notas de um moleque desocupado - 18-10-08

sexta-feira, 17 de outubro de 2008
por Jornal A Voz da Serra

Picasso entrou no estúdio às oito e meia da noite. O sol começava a tombar em Montmartre. A festa da tarde durara até a noite e a festa da noite duraria até a manhã seguinte. Ele era a porra do Pablo Picasso, o medalhão.

Levantou o pulso e olhou para o relógio. Ainda tinha duas horas antes da festa. Não podia faltar. Precisava ir. Era em sua homenagem. Além disso, adorava festas. Comparecer em festas era o que fazia melhor nos últimos tempos.

Cambaleou pelo estúdio tropeçando nas cadeiras até encontrar o interruptor. Não que precisasse de interruptor numa noite ensolarada dos verões parisienses, mas seus olhos estavam falhos. Como todo o resto.

Seu reflexo o encarava no espelho de corpo inteiro à frente. Picasso passou a mão na cabeça totalmente careca. Era a única superfície lisa na massa enrugada e curtida que era a sua pele. Seria simplesmente um velho magricela e careca jogando dominó na pracinha insossa de uma merda de buraco interiorano numa porra de país de terceiro mundo qualquer, se não estivesse em Montmartre e não fosse Picasso.

Caramba, como sou f...

Falou para o reflexo do espelho.

Picasso na fase azul. Picasso na fase rosa. Agora, quase não pintava mais. Quando pintava, fazia uma linha vermelha aqui e uma amarela ali, e depois vendia a tela por dois milhões de dólares para pagar as contas e as menininhas que se aninhavam no seu portão.

Agora era Picasso na fase vassoura-balde.

O medalhão da pintura moderna, o rei do cubismo, Pablito para os íntimos, pôs a vassoura recostada na parede e depois enfiou um balde em cima. Pegou um pincel e pintou dois olhos, um nariz e uma boca sorridente no balde.

Lá estava uma nova obra de arte.

Assinou Picasso (a mesma assinatura que anos mais tarde se veria na lataria de carrões reluzentes) atrás do balde e agora sim.

Lá estava uma nova obra de arte.

O dinheiro do mês já estava garantido.

Pensou em Van Gogh cortando a orelha para uma piranha que provavelmente ganhava mais dinheiro que ele; todo mundo ganhava mais dinheiro que ele.

A obra de arte o olhava com uma sorridente boca de tinta.

Pensou em Jackson Pollock, seu contemporâneo, dirigindo de encontro à morte e a uma árvore na beira da estrada; Jackson Pollock bêbado e barrigudo, depois de gastar todo o dinheiro do frisson da novidade.

A obra de arte continuava o olhando com uma sorridente boca de tinta.

Pensou em Goya, consumido pelos seus próprios demônios de sombras.

Em seguida, olhou para o relógio no pulso. Estava na hora.

Sorte de Van Gogh, sorte de Pollock, sorte de Goya.

Às vezes, a morte vem da pior maneira possível. Às vezes, a vaidade é como um infindável poço de merda.

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