Jesus Cristo disse: “Eu sou a videira verdadeira, e meu pai é o viticultor” e “eu sou a videira, vós sois as varas. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto: porque sem mim nada podeis fazer” (João 15).
É um prazer dividir um pouco de conhecimento sobre vinho e cultura com vocês, caros leitores. Estamos inaugurando um espaço de comunicação que, caso vocês gostem e aprovem, poderá ocorrer mensalmente.
O assunto é vinho. No Brasil ele está muito associado aos hábitos de consumo da elite, da população de maior poder aquisitivo. Afinal de contas, a bebida chegou com os colonizadores portugueses sintetizados na figura do decobridor destas terras, Cabral. O vinho navegante foi logo utilizado na primeira missa e, três séculos depois, se sofisticou com a vinda da Família Real em 1808. Essa imagem, contudo, é um grande equívoco e bastante distorcida, pois nos países da Europa e entre nossos vizinhos do Cone Sul, o vinho é uma bebida extremamente popular e considerada até mesmo como alimento. Vamos então bater um papo sobre essa intrigante bebida e tentar desvendar seus mistérios, pois acreditem, o vinho nasceu para todos.
Na história da humanidade, o vinho sempre esteve associado aos Deuses, desde o Egito antigo com Osíris, Deus supremo, era chamado de “Senhor do Vinho na Enchente”, passando por Dionísio na Grécia e finalmente Baco na Itália. No caso das festas natalinas das religiões cristãs, em especial o Catolicismo, a presença do vinho está intimamente ligada ao sagrado. Se até mesmo o Papa Bento XVI afrimou que: “Se o pão é o simbolo do que o homem precisa, por seu lado o vinho é o símbolo da superabundância da qual também temos necessidade. Ele é sinal de alegria, da transfiguração da criação. Tira-nos da tristeza e do cansaço do dia a dia e faz do estar junto uma festa. Alegra os sentidos e a alma, solta a língua e abre o coração: transpõe as barreiras que limitam a nossa existência”. Quem somos nós para discordar.
Na Europa ocidental, a Igreja Católica Apostólica Romana manteve viva a arte de apreciar o vinho ao substituir o poder do Império Romano, que por sua vez também estimulou seu consumo. Sua ascensão no primeiro milênio garantiu a manutenção do significado simbólico do vinho, usado no ritual consagração. Vemos isso claramente em várias passagens da Bíblia, como no momento que Jesus transforma a água em vinho ou no cálice sagrado usado na última ceia, onde todos os apóstolos estão sorvendo a bebida que depois será incorporada nos rituais da missa.
Assim, na consagração, momento mais importante da missa católica, o padre repete as palavras do Cristo: na véspera de sua paixão durante a última ceia ele tomou o pão, deu graças e partiu e deu a seus discípulos dizendo:
- Tomai, todos, e comei: este é o meu corpo que será entregue por vós.
Do mesmo modo, no fim da ceia, ele, tomando o cálice em suas mãos, deu graças novamente e o entregou a seus discípulos dizendo:
- Tomai , todos e bebei: este é o cálice de meu sangue, o sangue da nova e eterna alinça que será derramado por vós e por todos para a remissão dos pecados. Fazei isso em minha memória.
Destaca-se, também, que, de acordo com o Evangelho de João, o primeiro milagre de Jesus foi justamente transformar água em vinho, a pedido de Maria sua mãe, para que as bodas de Canaã pudessem cumprir seu ritual de alegria.
O caso do surgimento de vinho Châteauneuf-du-Pape, (novo castelo do Papa), é um bom exemplo incontestável da produção vinícola da Igreja. O nome refere-se à época do século 14, em que o Papa não residia em Roma, e sim na cidade murada de Avignon, na França.
É importante registrar que, além da santa ceia, não há relato algum de Jesus Cristo bebendo vinho, seja na alimentação, seja por prazer ou em ato que estimulasse seu consumo. Apesar dessa constatação, o fato inquestionável é que a Igreja era proprietária de vários vinhedos europeus e que sempre produziu o vinho com álcool para a Santa Missa (canônico). Acrescente-se a isso que a presença do vinho para os religiosos é parte integrante dos hábitos alimentares no cotidiano.
1 Revista Adega, Editora Inner Ano 3 número 20 de 2007 São Paulo. p 82. O Papa Bento XVI foi agraciado com o título honorário de sommelier pela Associazione Italiana Sommeliers (AIS), de Roma. Durante a cerimônia de entronização, o pontífice foi presenteado com um taste vin de prata. Segundo a Wine News Italy, Bento XVI é versado no grande valor cultural e simbólico exercido pelo vinho ao longo da história do cristianismo. Embora não tenham sido revelados seus vinhos preferidos, há rumores de que o papa, há décadas residente em Roma, seja amante dos grandes rótulos italianos. Entretanto, a Irmã Maria Elizabeth, uma das porta-vozes do Vaticano, entregou: “Não há registro oficial sobre esta hgonraria e, provavelmente, esta não é uma das prioridades do papa”.
Há dezenas de rótulos com motivos religiosos com figuras de papas, incluindo um que representa um possível papa de origem negra. Podemos citar o exemplo do vinho canônico francês L. Amouroux, Châteauneuf-du-Pape.
Tanto a religião católica quanto a judaica constituem hoje em dia dois importantes nichos de mercado para o consumo de vinho. O vinho de missa1 e o casher judeu representam excelentes negócios. Na Polônia, a Sacroexpo, uma feira de produtos para igrejas movimenta quantias milionárias em euros. A produção se destaca para atender às necessidades das igrejas católicas e em menor número, para as cerimônias religiosas do judaismo.
No Brasil, maior país católico do mundo, o vinho santo era, inicialmente, importado. A bebida tinha que necessariamente, apresentar um alto teor de álcool e açúcar para que se mantivesse conservada. Quando a produção ganhou escala e passou a se realizar também em vinícolas particulares a Vinícola Salton vai praticamente monopolizar sua produção. A vinícola deve isso a um padre espanhol, que ao rezar uma missa na cidade de Bento Gonçalves (RS), constatou que havia necessidade de se produzir o vinho. A vinícola Salton estava localizada bem em frente à referida igreja, o que deve ter favorecido a sua escolha. Segundo dados de 2009, “de acordo com a vinícola, a produção anual média do Canônico gira em torno de 400 mil garrafas. O vinho é mais procurado por religiosos, mas também costuma ser vendido para apreciadores de vinhos de sobremesa”.
Todo o processo produtivo era alvo de grande fiscalização por parte dos religiosos. Com o passar do tempo e com o aumento da demanda pelo vinho, que era consumido diversas vezes por dia na mesma igreja o mercado foi se ampliando e outros produtores entram na concorrência. Já se produz o vinho de missa em outras vinícolas gaúchas, tais como a Cooperativa Aliança, de Caxias do Sul, que comercializa garrafões de 5 litros; e a Adega Chesini, de Farroupilha, que também oferece o vinho Licoroso em formato bag-in-box, a caixinha de 5 litros.
Quando houve a lei seca nos EUA, a única permissão para se produzir o vinho foi outorgada oficialmente à Igreja, que dominava o know-how da produção. Já na Europa, a produção de vinho santo já se constituía uma prática incorporada à rotina dos trabalhos dos clérigos. Geograficamente, os mosteiros concentravam as atividades vitivinicolas. Muitas propriedades cultivavam as videiras dentro de suas próprias terras, nas proximidades das igrejas. Coube também aos monges fundarem a indústria do vinho na região da Borgonha e deve-se ao famoso Dom Pérignon o reconhecimento da criação do Champagne.
Parte integrante para o sacramento da eucaristia, o vinho está imbricado, desde sua fundação, à história do catolicismo através do ritual da Igreja. A bíblia apresenta várias passagens, aonde a vinha e o vinho estão presentes. Não por um acaso, em sua primeira declaração aos fiéis seguidores da religião católica, o papa Bento XVI usou a seguinte frase para exprimir seu papel como missionário. “Depois do grande papa João Paulo II, os senhores cardeais me elegeram, um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”. Outro depoimento interesssante é o do padre Maciej Kubiak : “Um doce Dorato da Sicília é muito bom para a missa. Posso recomendá-lo”. E acrescenta: “De fato prefiro um ‘Chateauneuf du Pape’, mas o reservo para o jantar”.3
Misturando o sagrado com o profano, variando entre as conspirações e comemorações, símbolo de dor e amor, nos simpósios e nos convívios, o vinho se propaga no ocidente e continmua a agregar novas áreas produtoras.
O melhor vinho para o Natal
Agora vamos à prática da degustação. No Natal, se você quiser tomar um bom vinho para celebrar o (re) nascimento de Cristo, nada como um tinto de uvas como as ‘pinot noir’ ou um ‘tempranillo’ para um bacalhau português. Os vinhos devem ser macios, ou seja, pouco tânicos ( aquele amarguinho do final de boca). Os lusitanos preferem o vinho tinto e afirmam que ‘bacalhau não é peixe e sim bacalhau’. As saladas mais crocantes pedem vinhos elaborados com as uvas ‘viogner’, um ‘torrontes’ bem aromático e até mesmo um ‘sauvignon blanc’. O chester e o peru pedem um bom vinho rosé gelado ou tinto leve. Um vinho do porto é uma ótima dica para acompanhar a sobremesa. Uma sugestão é o vinho do porto Lágrima de origem portuguesa, onde aparece a figura Jesus Cristo e bem apropriado para a ocasião. Há vinhos com ótima relação custo-benefício nas lojas especializadas de Nova Friburgo, basta fazer uma boa pesquisa antes de comprar.
Já no Réveillon, festa liberada de qualquer ligação com religião, tome um bom espumante nacional (lembre-se que espumante é vinho e que estamos proibidos por lei de o chamarmos de champagne, nome exclusivo para o vinho francês da Champagne). É tudo uma questão de marketing. É isso, no Réveillon quem manda é o espumante bem geladinho. No mais, seja ousado e faça suas próprias combinações e se libertem da ditadura do vinho “certo”. Se você gostou, é o que importa. Até nosso próximo encontro. Boas festas e um Ano-Novo espumante de alegria!
(*) Fernando Gama é sommelier
e mestre em Vinho e Cultura.
E-mail: fgama@britishschool.g12.br
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