Música pela vida afora

quinta-feira, 10 de novembro de 2011
por Jornal A Voz da Serra
Música pela vida afora
Música pela vida afora

Maurício Siaines

Marcos Botelho, nasceu em 1980 no Rio de Janeiro, e viveu lá até os 5 anos. Mudou-se aos 13 anos para Nova Friburgo, onde estudou no Colégio Estadual Jamil El-Jaick. Vivências familiares levaram-no a relacionar-se ativamente com a música desde criança. Aos 10 anos, começou a tocar bombardino em uma banda, em Duas Barras. Logo em seguida, passou para o trombone e foi tocar na Euterpe Friburguense.

Trabalhou como músico desde a adolescência, tocando em bandas de axé, de carnaval, em promoções de portas de lojas. Pretendia formar-se em engenharia química, até que se convenceu a dedicar-me profissionalmente à música. Nessa época, tinha as bandas como seu mundo, chegando a ter diferentes fardas delas em seu armário. Embora morasse em Nova Friburgo e tocasse na Euterpe Friburguense, atuava também na banda de Cordeiro, na de Duas Barras e até em bandas rivais, como as de São José e de Bom Jardim. Aos 18 anos, foi para a UFRJ, afastando-se temporariamente das bandas. Tocou algumas vezes, como músico extra, na orquestra Sinfônica Brasileira.

Marcos é bacharel em trombone, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em musicologia histórica, também pela UFRJ. Atualmente, é músico da Banda da Guarda Municipal do Rio de janeiro e o segundo regente da Orquestra da Candido Mendes em Nova Friburgo. Ele deu entrevista para A VOZ DA SERRA sobre suas experiências e reflexões na sexta-feira, 4 de novembro, na Ucam, pouco antes de ensaio da orquestra. Abaixo, um resumo dessa conversa.

A VOZ DA SERRA – Explique esse assunto de seu mestrado.

Marcos Botelho – Trata-se do estudo da música através da história. É analisar a música, tanto do ponto de vista interpretativo, como do ponto de vista etnográfico, do ponto de vista sociológico ... são várias vertentes, no meu caso, é a história.

AVS – Fale da relação entre música e vida social.

Marcos – A gente vem do bacharelado sem pesquisar, só tocando. Quando cheguei ao mestrado fui obrigado a ler sobre música, a falar a escrever. Minha orientadora trabalhava na vertente de história social. Hoje, na minha concepção de música, não tem como compreender a música fora do âmbito social.

AVS – E seus estudos sobre bandas de música.

Marcos – Poucos pesquisadores têm falado sobre o assunto. Entendia-se que bandas de música são tema importante para história da música, mas ninguém queria pesquisar. No primeiro período em que fiz uma monografia de final de semestre, o professor era um etnomusicólogo, Samuel Araújo. Ele veio com uma série de questões sobre o meu trabalho, como “o que é retreta?”, “o que é tocata?”. No meu mundo aquelas coisas eram comuns, mas não no mundo dele. Eu vinha do mundo da banda e ele não sabia daquelas coisas.

AVS – Mário de Andrade fez pesquisas interessantes sobre a relação da música popular com a erudita, mostrando como uma influencia a outra. Como você vê essa relação?

Marcos – O Mário de Andrade tinha uma visão que hoje não se utiliza mais. Ele estudava a relação entre a música folclórica e a erudita, deixando a música popular urbana completamente de lado. Quando Villa-Lobos começou a trabalhar com a música urbana, ele [Mário de Andrade] ficou meio sem saber. Mário de Andrade jogava para debaixo do tapete gêneros como choro como se não existissem.

AVS – O Villa-Lobos mudou esse negócio, não é? Ele frequentava a casa do pai do Pixinguinha ...

Marcos – Ele chegou a um ambiente meio simbólico—o próprio Mário de Andrade, também—que era a casa da tia Ciata, no Estácio [, no Rio de Janeiro], onde surgiu o samba.

AVS – Para o Mário de Andrade, então, a música urbana não tinha tanta importância ...

Marcos – Na própria Semana da Arte Moderna, de 1922, o que aconteceu de música foi de Villa-Lobos, e não havia qualquer concepção nacionalista, era uma música impressionista, da virada do século.

AVS – Falando em Villa-Lobos, outro ponto que gostaria de lhe pedir para abordar é a relação entre música e educação. Os corais que ele organizava com centenas de crianças no campo do Vasco da Gama tiveram muita importância e influenciaram muita gente, mesmo gente que não se dedicou à música.

Marcos – Em primeiro lugar, acho que a música é indissociável da vida, não dá para pensar a vida sem música, sem arte de um modo geral. E no processo de educação a música ficou muito aquém das necessidades. Mas a educação musical sempre existiu de maneira informal, dentro de casa. Minha avó, por exemplo, era professora de piano. Então havia um piano em casa e para uma criança um piano é um brinquedo maravilhoso. Quando fiz 4 anos minha avó disse: “Ou você estuda piano, ou nunca mais bota a mão no meu piano, você já está grande demais para brincar”.

AVS – E aí, qual foi sua escolha?

Marcos – Eu fui estudar. Então, a música está no nosso meio, mesmo quando a gente acha que não. É como na [favela da] Maré, como disse aqui [na Candido Mendes] o Sinésio [Jefferson Andrade Silva], onde tem o funk, o forró, a música brega, sem fazer juízos de valor, considerando uma melhor que a outra. Tenho vários amigos que gostam de funk e, ouvindo com eles, pude perceber que em vários funks a melodia é de músicas que se conhece e de que não se tem mais referência. E tudo vai se transformando. Acho que a educação musical está aí. E sempre existe alguma forma de transmissão. Infelizmente, temos pouca transmissão formal, mas ela existe.

AVS – Mas agora existe a obrigatoriedade do ensino de música nas escolas. O que você acha disso?

Marcos – Acho fantástico. Em primeiro lugar, a arte faz pensar, faz ser crítico. Talvez, exatamente por causa disso a música tenha sido tirada [dos currículos escolares]. Voltando, ajuda.

AVS – Você entende o ensino de música em uma perspectiva de formação de virtuoses, de gênios, ou de simplesmente oferecer às pessoas alguma coisa a mais que vai ficar em suas vidas de algum modo?

Marcos – Acho que é preciso começar a melhorar. Às vezes, algumas pessoas não ligadas à música não se importam com a qualidade e sim com o fazer. O fazer é o mais importante de tudo, óbvio, mas é preciso buscar a qualidade.

AVS – Mas tem que começar, não é?

Marcos – Tem que começar, partir de algum lugar.

AVS – É importante trazer a música para a vida das pessoas ...

Marcos – Concordo. Já discuti essas coisas. Em princípio, não quero formar um grande músico, mas um músico para a banda para ela se manter. Em segundo lugar, para que essa pessoa tenha essa vivência musical.

AVS – E essa relação de Nova Friburgo com suas bandas? Não só Nova Friburgo. Mas diversas outras cidades.

Marcos – As bandas são um fenômeno de que não se tem noção. A Funarte fez um levantamento na década de 1990 de 3317 bandas no país. Só a Associação de Bandas do Rio de Janeiro tem mais de cem associadas. Ou seja, mais de uma banda por município. Elas passaram por um momento confuso, no final da década de 1970, início da de 1980, e hoje estão ressurgindo, como a banda de Lumiar. A sociedade passou a entender que as bandas são uma necessidade social. Nesse final dos anos 70, as bandas perderam sua função social e tiveram que se reinventar.

AVS – Por que você acha que isso acontece especificamente nessa época, final dos anos 1970? Teria algo a ver com a expansão da televisão e de outras mídias?

Marcos – Acho que sim. A banda foi perdendo a função, uma vez que existem os aparelhos de som. Friburgo tinha quatro bandas no final do século XIX, a Euterpe, a Campesina, a União dos Operários e a Estrela de Friburgo. Isto sem contar com Lumiar e Amparo. Eram quatro bandas que atuavam no centro da cidade. As bandas entenderam que o espaço mudou—e aí entra muito forte essa questão da educação. Até a década de 1990, as bandas não tinham a educação musical em seus discursos.

AVS – Você conhece o trabalho do professor Marcus Wolff, da Ucam, em que a música é tomada como signo, isto é, como representação de relações sociais. O que você pensa a esse respeito?

Marcos – Meu trabalho é um pouco diferente, Wolff é semiólogo e eu não trabalho com semiologia. No meu trabalho estudo a música [em sua relação] com espaços sociais. Estive observando esse grupo [Sanfoneiros da Serra] de Lumiar eles não têm mais vínculo [cultural com os suíços e alemães da origem da colonização da localidade]. Eu assisti a apresentação deles lá em Conquista e achei que eles têm um pouquinho de polca no que tocam, têm uma pequena herança. Estuda-se muito pouco a sociedade interagindo com a arte. O artista é encarado como um ser acima do bem e do mal, superior a tudo. E não é, o artista é um ser social. Por exemplo: nas bandas, o dobrado, que é o que há de mais tradicional, tem o nome oriundo do passo doble, que é uma música espanhola. Mas, se você começa a ouvir, constata que tem muito da melodia da ópera italiana, que era muito tocada pelas bandas. Existiam muitos músicos italianos formando bandas, principalmente em São Paulo. A [antropóloga] Elizabeth Travassos diz que era comum pessoas assoviarem árias de óperas italianas pelas ruas. Existe uma ópera que foi montada mais de 20 vezes em um ano, no Rio de Janeiro, no final do século XIX. Era comum ouvir-se ópera. E, quando isso entra no fazer musical, vai interferir no choro, no dobrado, na polca. Porque o mesmo cara que toca na ópera é o que vai tocar choro, vai tocar dobrado na banda militar. Isto foi o que aconteceu com Anacleto [de Medeiros], que trouxe os músicos de choro para a banda [do Corpo de Bombeiros] e ela passou a ter esse som diferente. Por isso, a Banda do Corpo de Bombeiros é emblemática.

AVS – Essa história das bandas e, especialmente, da Banda do Corpo de Bombeiros, traz a questão do que os músicos podem fazer para sobreviver e introduz o problema da indústria cultural, formulado pela tendência de pensamento conhecida como Escola de Frankfurt. O que você pensa a respeito?

Marcos – A indústria cultural já existe, já está implantada. E é preciso aproveitar o que há de melhor. Há uma queda na qualidade porque as coisas ficam mais imediatas. Mas não vejo tanto problema, pois, se não fosse a indústria cultural não se ouviriam gravações maravilhosas. Não vejo a indústria cultural com um olhar tão ruim como o da Escola de Frankfurt. Acho que esta é uma discussão que ficou lá nos anos 1960 e agora não tem mais como voltar atrás.

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