Multitude - 30 de janeiro

Por João Clemente Moura
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
por Jornal A Voz da Serra

Nietzsche e a intensidade da vida

Costuma-se dizer que Nietzsche decretou a morte de Deus, como se isso fosse o aspecto mais importante da sua obra. Ora, o filósofo fez apenas uma constatação: na modernidade, diz ele, Deus deixou de ser o parâmetro das coisas, porque em seu lugar entrou o homem. A concepção ética dos nossos tempos é baseada na humanidade; valor este evocado pela filosofia, ciência, mídia, instituições sociais, governos, ONU e até mesmo pelas entidades religiosas, quando estas se dirigem ao grande público.

A morte de Deus é, para Nietzsche, apenas um ponto de partida para se pensar a possível morte do homem. O que viria a seguir? O que viria a substituir a humanidade? Seria o homem-finito um melhor parâmetro do que Deus-infinito? Quais seriam os possíveis valores de uma outra sociedade que ainda não existe, que ainda está por vir?

Pode-se pensar no fim do individualismo, numa relação mais harmônica e conjunta com a natureza, na cibernética, no fim do racionalismo que não leva em conta as emoções... É possível pensar em muitas coisas, mas, antes de tudo, é importante ter em mente que, para o filósofo (e para vários outros pensadores que vieram depois dele), o que julgamos ser a natureza humana é algo modificável, algo construído no espaço-tempo. O ser humano está sempre em relação a alguma coisa, em relação à sociedade e ao período histórico em que se encontra – são desenvolvidas diferentes visões de mundo, diferentes sistemas de pensamento.

Nosso sistema de pensamento moderno, fruto da tradição ocidental, baseia-se em valores fracos e decadentes, valores que negam a vida, diz Nietzsche. Essa crítica se refere tanto a nossa ciência e filosofia quanto à religião. Para além de qualquer ateísmo ou ceticismo, o filósofo ataca justamente a mania ‘humana’ de buscar verdades sobre o mundo, como se essas verdades fossem nos libertar, seja através da razão ou da crença.

Ao invés da verdade, Nietzsche propõe valores estéticos, artísticos, como parâmetro da vida-arte: tudo aquilo que traz exuberância à vida. O principal aspecto da arte não é o seu efeito de verdade, longe disso, mas sim, a sua potência de afeto, sua capacidade de comoção. Pois, por mais absurdo que pareça, a intensidade da vida não é um valor inerente ao pensamento moderno. A idolatria do conhecimento, da razão e da lógica é reinante, como se estes fossem o aspecto essencial da vida e não os meros instrumentos que eles de fato são. Não é de admirar que zanzemos por aí atrás do ‘sentido da vida’.

A arte liberta o homem da sua couraça; liberta o homem dentro do próprio homem: ela é feita pelo homem, mas está para além do homem e da sua finitude. A arte é o infinito na Terra, ilimitada, fora dos limites da razão. A vida, guiada pela arte em todos os seus aspectos, é a vida-obra-de-arte. Aliás, nesse caso, chamar alguma coisa de ‘obra de arte’ não fará tanto sentido, pois tudo será arte.

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