O preço da civilização
“Ao contrário do que se imagina, o inconsciente não é um lugar obscuro no cantinho da alma. Ele se localiza mais exatamente debaixo do nosso nariz... Quanto maior for a alma e menor for a vida, maior o problema”
Para Sigmund Freud, os seres humanos são animais como os outros, mas que reprimiram seus instintos. Essa não é uma constatação triste a princípio, pois é justamente o que faz a gente conviver em sociedade, é a base da civilização.
Os animais seguem seus instintos sem refletir sobre isso. Seres humanos, por sua vez, tomam decisões, fazem escolhas: podem trocar uma satisfação momentânea por outra que acreditam ser maior, porém mais trabalhosa; podem renunciar a uma vontade individual em prol da felicidade coletiva; podem renunciar a um ato prazeroso por temer uma punição social, seja ela da ordem do direito ou da moral; podem trocar um sonho por uma realização pessoal mais realista. Resumindo, o ser humano administra seus desejos.
Claro que isso não é tão simples assim. Aliás, se fosse, nem haveria psicanálise. Nós, humanos, simplesmente não conseguimos nos decidir tão facilmente sobre nossos desejos. Adiamos nossas escolhas e nos enganamos com tanta eficácia que essa artimanha nem chega a passar pela nossa consciência. É o que Freud chamou de neurose: nós não sabemos o que é bom para nós mesmos, pois a força propulsora dos desejos está localizada em um nível inconsciente.
Ao contrário do que se imagina, o inconsciente não é um lugar obscuro no cantinho da alma. Ele se localiza mais exatamente debaixo do nosso nariz. É isso mesmo! O inconsciente é aquilo que está tão na cara que nós não enxergamos, por isso ele consegue se apoderar de nós, zombando de nossas pretensões. Como no conto de Allan Poe, guardas do rei vasculham um quarto inteiro atrás de uma carta roubada, sem obter sucesso. Essa carta, no entanto, não está em nenhum esconderijo secreto, está justamente em cima da mesa.
Mas será que isso que escrevi até aqui se refere a uma natureza imutável do ser humano ou é apenas o retrato da sociedade em que Freud viveu e que perpetua até hoje, com as nuances características de hoje? Acredito que, de qualquer forma, existam pelo menos graus de intensidade de sofrimento psíquico e que isso é diretamente relacionado ao grau de maluquice da sociedade em que se vive. Nossa sociedade, por exemplo, é baseada em modos de relação específicos com o mundo (e que findamos por acreditar serem os únicos, serem “a vida como ela é”), em que dispositivos múltiplos de controle e exploração nos governam, em que a vida é “otimizada” para determinados fins convenientes, em que a pandemia depressiva é ignorada pelos comerciais alegres da televisão, em que qualquer horizonte de mudança é considerado utopia.
Em nossa sociedade, dita avançada, pouquíssimas pessoas têm a oportunidade de viver uma vida gloriosa em termos de realizações. Esse é o ponto. Já disseram certa vez que quanto maior for a alma e menor for a vida, maior o problema. No entanto, as almas vêm sendo diminuídas para caber em vidas cada vez mais pequenininhas, quando, na verdade, deveria acontecer o contrário. O mal-estar na nossa civilização é algo que pode, sim, ser diminuído. Até que um dia, quem sabe, consigamos achar o preço justo da civilização.
Deixe o seu comentário