A mania começou na Ásia, tomou conta da Europa e agora está chegando ao Brasil: crianças, algumas de até cinco anos, estão lutando boxe! Mas será que elas podem praticar um esporte tão perigoso? E mais: quais os riscos para a saúde e para a formação desses meninos?
Socos, cotoveladas, joelhadas, chutes em toda parte do corpo. Inclusive na cara. Só não é permitido mesmo mordidas e cabeçadas. Esses são os golpes do muay thai, o boxe tailandês, um esporte violento, mas que vem crescendo em vários países do mundo, inclusive no Brasil. E em uma categoria que nem existe oficialmente, mas que podemos chamar de fraldinhas. São crianças de 6 a 12 anos de idade.
O programa Fantástico, da TV Globo, exibiu no dia 1º deste mês uma matéria em que o treinador de boxe tailandês Artur Mariano afirmou que hoje o muay thai é um esporte milionário. “Pessoas estão ganhando bolsas de US$ 1 bilhão no muay thai. Então, com isso, cria um sonho das crianças que cada vez mais estão querendo ser como aquele lutador que está em destaque. E isso é normal, elas estão tendo referência em quem se inspirar, como qualquer esporte tem seus ídolos. Com o futebol não é assim?”, comentou.
A reportagem exibiu ainda imagens de um documentário inglês que apresentou crianças de 5 a 10 anos que já estão literalmente na luta, em busca desse sonho. O boxe tailandês virou febre entre a garotada na Europa. Só na Inglaterra, já são mais de 500 academias ensinando a luta para as crianças. No Brasil, nós não temos crianças sendo preparadas para competições como acontece lá fora. Mas nem por isso os treinamentos nas academias deixam de ser intensos.
Em uma academia de Nova Friburgo encontramos uma turma de dez crianças, sendo oito meninos e duas meninas, que fazem em média três aulas de uma hora por semana. Tudo começa com uma pequena corrida, exercícios de alongamento e alguns polichinelos para aquecer. Depois vem a simulação de golpes no ar. Sacos de pancada para trabalhar a força, almofadas para melhorar a coordenação e o sparring – quando a luta ganha o ringue e aí é pra valer.
“Mas nessa fase só participam três alunos e eles lutam comigo. Não permito que eles treinem os golpes uns com os outros exatamente, porque as crianças não têm controle da força aplicada nos golpes e podem acabar machucando umas às outras”, ressalta o professor Anderson França de Carvalho. “É melhor eles brigarem, ou melhor, brincarem aqui, do que sair na rua brigando também. Eles estão fazendo esporte aqui e descarregando todas as tensões dentro de um ringue, dentro de uma academia”, justifica Milton França, pai de Hendryl França, de 8 anos. Ao ser questionado se com oito anos não seria muito precoce, se não estimularia a agressividade, o pai responde: “Com oito anos é uma boa idade, eu diria que o suficiente. Desde pequenos eles são nervosos e já têm ansiedade. Então, acho que é bem saudável isso para ele”, complementa o pai.
Especialistas alertam para o risco das competições feitas com crianças
Os médicos não concordam. “O boxe é enquadrado pela Academia Americana de Ortopedia e pela Academia Americana de Pediatria como sendo um esporte de colisão, um esporte de contato. E também é um esporte onde existe uma necessidade de preparação física muito grande. Ou seja, as crianças até 10, 12 anos de idade não têm ainda aptidões físicas e neuromusculares de praticar tal esporte. A criança quando leva um soco na cabeça, ela pode gerar uma alteração no funcionamento do cérebro. Estudos mostram que o uso do capacete protege os adultos, mas não as crianças”, alerta João Alves Grangeiro Neto, médico ortopedista do Comitê Olímpico Brasileiro (COB). “Essas crianças podem ter dificuldade no aprendizado, podem ter dificuldade em memorização e podem, sem dúvida alguma, deixar essas crianças pré-disponíveis a uma lesão mais grave”, complementa João Alves.
A Federação Internacional de Boxe Tailandês só aceita maiores de 14 anos em suas competições. Mas isso não impede que as academias espalhadas pelo mundo criem campeonatos com suas próprias regras. Na Tailândia, por exemplo, as crianças lutam sem os equipamentos de segurança. Até sem capacete. E pior: com apostas em dinheiro. Já nos campeonatos europeus os equipamentos de segurança são obrigatórios. E em vários campeonatos socos na cabeça são proibidos. No Brasil, a competição entre menores de 14 anos é proibida. Mas, no Rio de Janeiro, crianças abaixo desse limite de idade já se enfrentam nos ringues em eventos onde tudo lembra uma competição, mas que os organizadores fazem questão de frisar que se trata apenas de uma apresentação.
O clima nas arquibancadas é de competição. E o nervosismo das crianças também. Qual será a sensação para essas crianças quando o momento da apresentação se aproxima?
“Assim, no meu corpo todo, parece um choque, pois tenho medo de perder”, explica Gabriel Rodrigues, 13 anos. Até mesmo a organização do evento se confunde ao tentar explicar a diferença entre competição e apresentação. “Abaixo de 14 anos não tem uma legislação em nível mundial. Porém, aqui no Brasil, estamos fazendo em nível de incentivo. As crianças participam de competições por experiência e ambas conquistam o primeiro lugar”, diz Carlos Camacho, supervisor técnico da Federação Brasileira Muay Thai Tradicional.
Ao ser questionado se então já existe no Brasil competição com crianças abaixo de 13 anos, ele diz que estão começando, mas que é uma apresentação, uma luta de exibição. Não é uma luta de competição, é o que tenta explicar o organizador. Ao ser questionado se para ele é como se fosse uma competição, o lutador friburguense Gabriel Rodrigues, de 13 anos, responde que sim, porque, na opinião do menino, não deixa de ser uma luta.
Mas, afinal, que diferença faz para as crianças?
“A aula é uma coisa, a competição, o circo romano é outra. Emocionalmente, você brincar de boxe é uma coisa, já lutar é outra. Você pode ter conseqüências muito nocivas, pois a criança se sentirá extremamente pressionada sabendo que está em jogo vencer ou perder”, alerta a psicóloga Maria Inês Bittencourt.
O professor de boxe Anderson França é pai de Felipe Spinelli Davis França, que tem 5 anos. “Meu filho pratica o esporte porque quer, mas isso aqui para ele é uma brincadeira. É claro que eu gostaria muito que ele fosse um grande lutador, mas ele é quem vai escolher. Eu estarei aqui para prepará-lo para isso, caso seja esse o desejo dele. Por enquanto, eu já estou familiarizando ele com o esporte”, diz o professor de boxe tailandês.
Breno Barroso Mangia, de 10 anos, pratica o esporte há um. Segundo o menino, nada mudou desde que ele passou a fazer a luta. “Um amigo do colégio me chamou para começar a fazer aula. Eu falei com minha mãe, ela veio comigo à academia, assistimos a um treinamento e então ela permitiu que eu fizesse também. Não acho o esporte violento, gosto tanto, que passei a acompanhar tudo quanto é treino e luta. Quero ser um lutador de destaque”, afirma o menino. A mãe dele, Márcia Rejane Barroso Mangia, acha horrível ver os adultos lutando. “É muito violento e fico com o coração apertado ao ouvir meu filho dizendo que quer lutar, participar de competições, pois eu olho e o vejo nessa situação. Não sei se vou agüentar”, confessa Márcia.
“Machuca, mas é pouco. Em competições eles usam luva, caneleira, capacete de cabeça, protetor bucal, enfim, vários equipamentos de segurança para garantir a integridade do competidor. Com todos esses cuidados, eles não se machucam. Não tem como”, defende Anderson, que acha fundamental os pais acompanharem as aulas dos filhos. “O Breno, por exemplo, já voltou para casa machucado alguma vez?”, questiona mestre Anderson à mãe de Breno e ouve não como resposta.
Deixe o seu comentário