Embebida em azeite, curando-se da ressaca d’ontem, ela se encontra, agora, sentada na grama, em algum lugar escondido; ela está olhando para o céu estrelado, identificando, como um amigo meu costuma fazer, as estrelas, as trajetórias dos vôos noturnos, algum satélite que brilha queimando sobre o impacto do distante sol, talvez uma música soando levemente, para não tapar de vez o som da mata que tanto lhe agrada, os cabelos agitados por morcegos que passam rasante pela noite.
Tudo corre tão depressa, se você tropeça, não vai levantar.
Corta para outro momento, você imprensada contra a porta da sorveteria, recebendo meu beijo com gosto de álcool, com cheiro de tristeza, seguido de abraços noturnos que se perdem, sem valor.
Você olha para as estrelas, e, de alguma forma, eu olho pra você, buscando decifrar alguma coisa nesse mistério todo desses olhinhos avexados, nessa covinha que se forma sob o nariz quando você sorri, quando você mostra esses dentinhos frágeis, cada vez menores, quebrados, despreocupados. Desleixada, descabelada, pés sujos, musicalmente linda. Uma intelectual feiticeira, minha maga, minha perdição, minha descaradamente linda mulher suja de barro.
Debaixo da cachoeira você surge, Iara completa, perfeita. Encharcada, você guarda algo que, eu espero, seja meu um dia.
Encerra-se sob a música, prenunciando um final de prazer, onde eu não estou presente, onde estou distante, talvez entre as folhas, observando-a divertida, feliz, viva. E eu seguindo como posso, nessa escarapuça, morrendo e alucinando, cheio de medo, só podendo martelar esse teclado velho e empoeirado que guardou e recebeu, se não todas, boa parte das mentiras que insisto em criar, e implorar para que sejam verdades.
Estes são os comentários do sobrevivente. Abandonado, esquecido no meio de uma pilha de CDs, Alceu Valença é recuperado, entregue, desconfiado, tocando, ainda que arranhado.
Veja só, quantos desses perdidos ainda existem? Quantas coisas são deixadas para trás, pegadas na areia, apagadas pelo mar agitado, minhas doces damas, amantes passageiras de um navio que já passou, perdidas para sempre (seus gemidos tapados pelos chilreios dos pássaros pela manhã), comigo admirando o pôr do sol, observando vestidos tingidos, sentindo alguma mágica maldosa me percorrendo através de minha solidão.
É exatamente isso que gostaria de compartilhar contigo, amor, este delírio, este desatino, esse choque me trespassa quando entro em contato com o teclado, quando machuco pra valer a minha vida, me concedo este salvo-conduto, porque o que passa a importar é exatamente a minha mandinga, a minha vitalidade, não a ordem, mas o caos que abarca tudo, que me dá vida, que me enche de prazer, que faz com que eu entenda, enfim, onde é que isso tudo vai dar – que me faz perceber que não existe problema algum, desde que eu possa continuar com esses meus anoiteceres.
Você é a minha vítima ideal, reconhecida, uma pequena lenda, elevada ao status de musa, uma paixão iridescente, fotografa em sua timidez, revela-se menina, frágil, corporificada, cheia de detalhes a serem escondidas.
Admiravelmente grato por toda a inspiração que me deu, te abandono num ponto de ônibus no meio do deserto e rezo para que sobreviva.
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