Meu vizinho morador de rua

sexta-feira, 09 de março de 2012
por Jornal A Voz da Serra

Alessandro Lo-Bianco

Da janela da minha sala, eu vejo a casa de quem não tem onde morar: a rua. Todos os dias, um senhor de fios brancos na cabeça inicia e termina seu dia à luz da minha observação. Ele mora num terreno baldio, em um matagal, atrás de um muro muito alto que corta a minha rua. Como ele faz pra subir nesse muro e pular pro outro lado? Não sabemos, nem os mais jovens e esbeltos conseguem subir naquele muro. Mas ele sobe.

Nosso dia começa igual: logo quando eu acordo, na minha cama, observo que ele acorda na terra, em baixo da árvore, no matagal. Eu levanto e vou ao banheiro, tomo banho, e ele permanece no matagal. Eu coloco minha roupa para trabalhar, e ele continua de bermuda e sem camisa. Sento-me à mesa para tomar um café da manhã; é neste momento que ele está escalando uma árvore do terreno para pegar uma jaca. E aí, devidamente arrumados e alimentados, saímos pra trabalhar e ganhar a vida. Enquanto vou pra redação, ele vai para as ruas da cidade.

Ao chegar do trabalho, às 20h, ele ainda não chegou. Isso só acontece por volta das 2h. É o horário em que nós, ilustres moradores do prédio, acordamos e escutamos nosso nobre vizinho na calçada. Isso porque ele ainda não terminou seu trabalho. Antes de entrar em “sua casa”, ele estende uma lona no chão da rua, onde, uma a uma, amassa todas as latinhas que recolheu ao longo do dia. Somam-se mais ou menos umas 300 latinhas por dia. Ainda tem gente que reclama do barulho e chama a polícia. Após amassá-las, ele embala tudo em sacolas de lixo, e joga do outro lado do muro, no matagal. E aí, vem o mais incrível: aquele senhor, de mais ou menos 70 anos, sobe no muro. Ele escala o poste de luz, pula em cima do muro, e depois pro matagal. Enfim, em casa.

Certo dia, meu vizinho estava catando latinhas na praia, quando foi abordado pela equipe do Pânico na TV. Uma das paniquetes acabou dando um estalinho nele, que virou celebridade no bairro após a transmissão do programa. Devido aos fios de cabelo e longa barba branca, foi apelidado pela turma do programa de “O Profeta”, que acabou virando um quadro da atração, que foi transmitida apenas por três semanas.

Durante dois meses, “O Profeta” virou celebridade na rua, e ninguém reclamava mais do barulho das latinhas sendo amassadas de madrugada. Alguns jovens até pediram pra tirar foto com ele, que nem imaginava o que estava acontecendo, porque não tinha televisão em sua casa. O tempo de fama passou e, após seis meses, ontem, acordei às 4h da manhã para tomar um copo de suco. Automaticamente olhei pela janela do quarto. Foi quando esse guerreiro da vida estava chegando em sua casa. Novamente, sozinho, e não mais lembrado por todos, ele amassou cerca de 300 latinhas, embalou, jogou no matagal, escalou o poste de luz, pulou pro muro, e do muro pro matagal. Lembrei que acordaríamos juntos, por volta das 8h. Ele nunca passa desse horário. Há cerca de três anos que somos vizinhos e que acompanho sua jornada. É um vizinho que eu tenho, que não tem vizinhos.

Ao passar por mim na praia, chamei e fiz sinal mostrando que uma lata de cerveja, consumida por mim, estava à sua disposição. Ao pegar comigo a lata, amassar e jogar em sua sacola, me agradeceu. Foi quando nos olhamos. Ele viu um garoto qualquer, na praia, que contribuiu em nada para sua vida, ou, quem sabe, com uma latinha que vale 10 centavos. Comigo, foi diferente. Ele nem imaginava o que eu estava vendo cara a cara: um familiar vizinho que, há três anos, me ensina sobre a dureza e realidade da vida. Seu tempo de fama passou, e ele continua dormindo no matagal, atrás do muro que corta minha rua.

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