Eu e minhas irmãs crescemos num bar. Nos fundos de um bar! Nele por pouco não nasci e assim que me percebi no mundo, descobri que ele era azul. E de quando em quando, nas subidas e descidas, tinha nuances marrom da profusão de malas que se espalhavam por todos os cantos. Com os dragões me encantei mais tarde!
O Bar e Leiteria Central só cerrava suas portas após a última sessão do Eldorado, aguardando seus frequentadores que lá iam tomar uma média de café com leite ou um chocolate quente. E puxando pelo fio da memória, a mais distante é a dos pais proseando todas as noites com o Sr. Rubinho, dono do cinema, enquanto brincava com as irmãs no coreto da antiga Praça D. João VI.
Com certeza a prosa ia além de galinhas voadoras durante as exibições! E embora essa seja a primordial, a imagem ainda vívida de tão impactante eram as brigas homéricas entre cenefistas e alunos dos demais colégios. Os jogos intercolegiais no Ginásio Celso Peçanha continham spoiler. E na praça, entre socos e pontapés, o azul envolto pelo gás lacrimogêneo. Quem viveu, viveu!
Na contenda entre jovens que marcaram a cidade de então, o bar do pai era o “porto seguro”. Quando os ânimos acirravam e a polícia aparecia, ele ali abrigava os da Fundação e fechava as portas. E se o tempo fosse exíguo para fechá-las, os alunos mais visados eram escondidos atrás de uma cortina de chita, num vão, debaixo da antiga escada de madeira que dá acesso à parte superior do sobrado. Em plena ditadura militar! Num tempo em que continuam nos enviando um cheirinho de alecrim, me pergunto se a figura imponente e respeitável do pai na porta da cozinha impediria que os policiais adentrassem onde a família residia.
Talvez os encarasse por também ter sido um militar da Guarda Fiscal em Portugal, terra da Revolução dos Cravos que ele muito comemorou. O pai encarava quem quer que fosse! Os alunos, quando estes queriam que ele lhes cedesse garrafas de vidro para brigarem. Sensato, recusava! A mãe, passional, que nesta pendenga dele discordou. Não estou certa se foi esta a ocasião a qual os alunos, em represália, fizeram greve e deixaram de frequentar o bar. Até as malas aderiram!
Diferentemente da figura imponente que não agradava a todos e que, aliás, não fazia a menor questão, a mãe era unanimemente querida. Em algumas ocasiões, quando encontrava um ex-aluno que ignorava o pai e perguntava somente por ela, imaginava se seria um dos pequenos do Ginásio para quem, com todo carinho, preparava “chazinhos” que aliviassem as dores de barriga ou os enjoos. Eram os queridinhos! Coisas de mãe!
Mas ai daqueles que ousassem criticar os do Científico por sua fama de mal. Defendia-os contando que num dia de subida, o pai e o ajudante adoentados e ela, sozinha, naquele bar lotado de alunos que esperavam a caminhonete da noite, solidários e respeitosamente, aguardavam serem servidos. E só partiram após lhe fecharem, com gentileza, as pesadas portas do bar.
Outros tempos! Frequentadora assídua do Coliseu do Porto, cidade em que residiu até emigrar, além das noites de fados, assistia também as companhias de teatro brasileiras quando lá se apresentavam. E, em uma conversa recente alguns meses antes de partir, recordou emocionada que nunca poderia imaginar, num dia de formatura, receber em seu “boteco” uma das atrizes a que tinha assistido em Portugal, a francesa Henriette Maurineau. Memórias da Fundação!
O bar do pai foi de muitos! Dos operários das fábricas, da vizinhança da Rua São João e da molecada de olho no baleiro, do vozeirão do Edmo Zarife, dos veranistas, dos funcionários dos escritórios, comerciários, bancários e das famílias que lá lanchavam, dos locutores da Rádio Friburgo, dos colunistas de AVS, dos executivos e profissionais liberais, de crianças que gostavam de sorvete de ameixa, dos adultos que preferiam pistache. E das meninas, fascinadas pelos rapazes que lá reinavam! Com o fim do internato foi-se o tempo das “carapinhadas de abacate” e dos “generosos sanduíches”. O Bar da Fundação se tornou apenas Bar do Seu Mário!
Talvez o atual “harmonizar” não se adequasse àquela clientela mais Bukowski, apreciadora do chopp impecável com bolinho de bacalhau. Época em que suas mesas eram disputadas nas manhãs de sábado e domingo, da turma do Chilo, dos jogos da Copa do Mundo, dos blocos e das memoráveis performances de Francis e Eduardinho nos Carnavais.
Às tardes, durante a semana, a “turma da Ivete”, à noitinha os alunos da Fonf tocando violão, dos casais de namorados que se adequassem ao conservadorismo do pai. Afinal, era um “bar de família”. Independentemente de selfies, posts ou lives, memória afetiva de gerações!
Friburgo, 29.01.84
“Hoje, eu sinto um pouco a morte de Friburgo. Mas por tudo que o bar do Seu Mário nos permitiu viver estes anos, eu só tenho uma coisa a dizer, muito obrigado! A vida continua!”
Palavras escritas numa bolacha de chopp no último dia em que o bar abriu suas portas. E a vida naturalmente seguiu seu curso até que, assim como seu bar, o pai também se foi num dia 29. Inúmeras condolências, sinceras homenagens, o voto de profundo pesar. E aleguches em forma de coroa, olhos marejados, palavras emocionadas, encontros casuais eivados de sentimento e recordações. De quando em quando, o afeto real no mundo virtual. Nos guardados da mãe, cartões de Natal e convites de casamento ou formatura de muitos que passaram pelo “boteco”. E numa caixa especial, separado dos demais, os dos alunos da Fundação, daquele colégio que marcou não só a família de forma tão contundente, mas uma época. E numa cidade tão desfigurada, todo ano o som dos clarins na Alberto Braune ainda hipnotiza e assim como muitos, a adulta que sou reencontra a criança que fui. Aleguche!
*Ana Maria Babo é filha do seu Mário
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