Procópio Ferreira: o grande comediante
Mario de Moraes
“A popularidade de Procópio era impressionante. Quando questionei Bibi sobre o fato, ela brincou, dizendo que para se ter uma ideia do que seu pai representava seria preciso juntar Xuxa com o galã da novela das oito e a mais famosa dupla sertaneja”, escreve a jornalista e atriz Jalusa Barcelos em seu livro O Atleta da Palavra, sobre a vida do ator Procópio Ferreira, lançado pela Record em comemoração aos 100 anos de nascimento daquele que foi, sem dúvida, o primeiro grande ator cômico do Brasil.
Para os que não conhecem Procópio nem de nome, basta que lhes revele um fato, contado na mesma obra, ao tempo em que nem se sonhava com a televisão em nosso país. Sua popularidade era tanta que quando desfilava pelas ruas do Rio de Janeiro, dirigindo o seu carro esporte conversível, o povo se aglomerava nas calçadas para aplaudi-lo. Uma das fotos mais divulgadas daquele tempo, publicada no livro O Mágico da Expressão, editado pela Funarte, mostra Procópio Ferreira sendo carregado por seus admiradores, logo após seu desembarque de um navio, de volta de uma excursão à Europa.
O pai o expulsou de casa
João Álvaro Quental Ferreira nasceu no dia 8 de julho de 1898, no Rio de Janeiro. Seu pai, Francisco Firmino Ferreira, era português da Ilha da Madeira. Sua mãe também viera de Portugal e se chamava Maria de Jesus Quental Ferreira. Procópio era o primogênito de quatro irmãos, sendo que um deles, Jaime Ferreira, também foi ator. Desde criança que Procópio sonhava em trabalhar no teatro. Isto numa época em que não existiam praticamente atores famosos no Brasil e a carreira era mal vista pela sociedade.
Por essa época, o pai de Procópio já era um industrial bem sucedido, fabricante de móveis, e foi ele, sem querer, quem o incentivou, levando-o a assistir algumas peças, que o deixaram bem impressionado. Lançando mão, novamente, de Jalusa Barcelos, ela conta que “Procópio foi a um espetáculo infantil e se apaixonou pela fada e seu poder mágico. Ele sempre dizia que aquela cena decidira a sua carreira. Mas no início ele teve que comer o pão que o diabo amassou para seguir em frente.”
Aos 18 anos, quando o pai, furioso, soube que ele estava matando as aulas de direito para frequentar a Escola de Artes Dramáticas do Rio, atual Martins Pena, expulsou-o de casa, fazendo-o sair apenas com a roupa do corpo. Depois foi ao armário do quarto de Procópio e rasgou todo o seu vestuário.
Entrou pela porta errada
A estreia de Procópio no palco foi com o nome de João Ferreira. Aconteceu em dezembro de 1916, no carioca teatro Carlos Gomes, interpretando, para a companhia teatral de Lucília Peres, um papel de pouca importância: o de um criado na comédia francesa Amigo, mulher e marido (L’Ange du Foyer). Contam as crônicas da época que o jovem ator estava tão nervoso que entrou no palco pela porta errada. Esse foi seu único erro, em sua vitoriosa carreira de sucessos e uma coleção de prêmios e honrarias que poucos atores receberam em todo o mundo.
Na companhia de Lucília Peres, em parte devido à sua idade, Procópio não teve nenhuma boa oportunidade, representando desde um soldado que tomava conta do túmulo de Cristo, no Martir do Calvário, ao comparsa de A cabana do Pai Tomás, peça na qual usou, pela primeira vez, o nome que o celebrizou. Ainda em 1917 foi trabalhar no Politeama do Méier, mudando de gênero. Nesse teatro de um subúrbio carioca fez toda espécie de operetas vienenses e revistas.
Existe muita controvérsia em torno da mudança do nome de João Álvaro de Jesus Quental Ferreira. A história mais aceita pelos biógrafos de Procópio Ferreira remonta a 1917, quando ele estava ensaiando para fazer o papel do Moleque Beija-Flor, numa adaptação de A cabana do Pai Tomás. O diretor da peça sugeriu-lhe que, pelo menos, abreviasse o nome. João resolveu consultar a folhinha e ver qual o santo do dia. Era São Procópio!
Em 1918, aos 20 anos, ingressou na Companhia Itália Fausta, tomando parte, então, em todo o repertório da Companhia Dramática Nacional, que ia de Antígona a Ré Misteriosa. Nesses ontens o famoso empresário Pascoal Segreto pontificava na Praça Tiradentes, no Centro do Rio, que reunia diversos teatros. Pascoal era dono de todos eles e resolveu criar uma companhia de operetas para atuar no teatro São Pedro (atual João Caetano), anunciando-a pomposamente como gênero Teatro Chatelet, de Paris. Dela sairiam dois dos maiores atores do nosso teatro de comédia: Procópio Ferreira, em 1919, e Jaime Costa, em 1920.
Sua própria companhia
Em 1920, ao fundarem uma companhia de comédias, Alexandre de Azevedo e Antônio Serra, dois atores portugueses radicados entre nós, contrataram Procópio Ferreira. Era o início e integração definitiva num gênero que nunca mais o abandonaria e no qual o público jamais deixaria de aplaudi-lo. No período 1921-22, Procópio passou para a Companhia Abigail Maia, onde obteve os maiores êxitos como comediante, como na peça A Juriti (adaptada para comédia) e Onde canta o sabiá, quando teve a honra de interpretar o papel principal.
Eram tempos áureos para os teatros, quando o povo acorria a essas casas de espetáculos, lotando-as diariamente. A tal ponto que as companhias costumavam fazer duas sessões noturnas. As peças giravam sempre em torno de um ator ou atriz bem popular, que garantia a bilheteria. Em 1924 Procópio Ferreira, já conhecido nacionalmente, resolveu formar sua própria empresa teatral. E, como é óbvio, escolheu para o repertório peças cujo papel principal lhe caísse como uma luva.
Por vezes isso não era possível, mas Procópio não hesitava em adaptar a peça ao seu estilo. Foi assim com a comédia francesa Nina, para a qual ele criou um personagem adequado à sua figura. Os demais atores, os comparsas, eram obrigados a obedecer a uma rígida hierarquia no palco. Eles, por exemplo, só podiam sentar-se depois do ator principal.
Sobre essa aparente discriminação, explicava Procópio: Para haver teatro de equipe, como querem alguns, é necessário que todos os atores estejam no mesmo nível. Não teria sentido uma Sarah Bernhardt, um Jean Louis Barrault cederem seus papéis de protagonista para atores de menor brilho.
Deus lhe pague
Devido ao crescente sucesso de sua companhia, Procópio inovou na criação de peças da época, contratando autores exclusivos, que o abasteciam de textos, graças ao bom salário que lhes pagava. Foi assim que surgiu seu mais conhecido êxito, Deus lhe pague, de Joracy Camargo, considerado um dos maiores sucessos do teatro mundial. Essa peça foi representada por Procópio Ferreira 3.621 vezes até 1968, tornando-se o original mais famoso do teatro brasileiro, sendo traduzida e levada à cena em quase todo o mundo.
Foi no teatro de Procópio que surgiram grandes nomes, como sua filha, Bibi Ferreira, do seu casamento com a atriz Aida Isquierdo, e o ator Rodolfo Mayer. Feio, baixo, de temperamento difícil, vaidoso, centralizador, alienado, Procópio, em contrapartida, possuía um charme e simpatia capazes de apagar todas essas más qualidades. As mulheres, de modo geral, eram facilmente conquistadas. Tanto que, depois da mãe de Bibi, Procópio casou mais três vezes e teve um sem-número de casos amorosos, dos quais nasceram, conhecidos, mais cinco filhos, entre eles o ator Renato Restier.
Embora Deus lhe pague tenha sido a peça que o tornou conhecido em todo o Brasil, ficando anos em cartaz, em O avarento, de Molière – peça estreada em 1943 e remontada em 1969 – sua representação de Harpagão constitui a extraordinária simbiose de um prodigioso ator com um fabuloso personagem. O ator francês Louis Jouvet, que assistiu ao espetáculo no Rio de Janeiro, ao término do mesmo estava tão entusiasmado que foi ao camarim convidar Procópio para apresentar O avarento em Paris.
O Beija-flor
Existem muitos fatos pitorescos relacionados a Procópio Ferreira. Um deles refere-se ao valor dado aos seus bens, quando terminava um dos seus inúmeros casos amorosos. De tudo que estivesse na residência em comum, só fazia questão de levar duas coisas: a biblioteca e o Beija-flor, um bar assim batizado, que ele montara pela primeira vez ao tempo em que vivia com a mãe de Bibi. Nele havia tudo que faz a graça de um botequim pé-sujo, como as típicas mesas e cadeiras e até uma máquina registradora, que nunca funcionou, já que ali era tudo grátis, autêntica boca-rica. A maioria dos atores e atrizes, assim que terminavam os espetáculos, corriam à casa de Procópio para se deliciarem com suculentas dobradinhas à moda do Porto e cachaça de primeira qualidade
Tônia Carrero lembra, no livro de Jalusa, que ela e seu então marido, Adolfo Celi, eram habitués do Beija-flor. Nessas reuniões, os filhos, de diversas mulheres, conviviam harmonicamente. E foi um deles, Lígia, que revelou que Procópio, embora um bon-vivant, era um fanático comunista. “Provavelmente por ter medo de que a revelação pudesse prejudicar sua carreira, Procópio manteve em segredo a opção política”, conta Jalusa.
Tinha um gênio irascível. Isso foi comprovado quando, de certa feita, sua companhia excursionava por Porto Alegre. Ao saber que a atriz que estava namorando tinha um caso com um coronel gaúcho, Procópio partiu para a grossura, dando-lhe uma surra.
O livro da jornalista não só aborda a carreira artística de Procópio Ferreira, mas informa, também, suas inúmeras e efêmeras paixões e as 461 peças em que trabalhou em seus 64 anos de palco. E esclarece: “Procópio não morreu rico. Ao contrário. Teve que trabalhar até os últimos dias de vida, em 1978, para se sustentar.”
A carreira de Procópio Ferreira começou a declinar a partir do final dos anos 40, já que seu espaço no teatro brasileiro ficava cada vez mais exíguo. Seu público fiel desaparecia aos poucos e os jovens tinham outros interesses. Daí que, além de interpretar o musical americano Como vencer na vida sem fazer força, pouco mais fez de novo no teatro naquela época. Na década de 60 Procópio Ferreira aderiu à televisão e passou a aparecer em diversas novelas. Por ironia, seu último prêmio de interpretação resultou de um dos seus raros trabalhos no cinema. Em 1972 a Air France o premiou pelo seu desempenho no filme Em família.
No teatro, além de remontar antigo êxitos, com elencos cada vez menores, devido à falta de verba,
também passou a representar sozinho, como em O vendedor de gargalhadas, de 1975, e Como fazer rir, coletâneas de textos de humor. Mas garantia que iria trabalhar até o último dia de vida. Comemorou seus sessenta anos de teatro internado num hospital, mas assim que lhe deram alta foi excursionar pelo interior de São Paulo com Como fazer rir. Procópio escreveu diversos livros sobre a arte teatral.
Ele era um contumaz fumante. Nos tempos finais, porém, usava uma piteira, tentando amenizar o mal do tabaco. Influenciado por Hamilta, sua última mulher, ingressara numa seita, a Cultura racional- Universo em desencanto. Este constituiu o último desafio para Jalusa Barcelos: encontrar Hamilta, para que ela contassse, em seu depoimento, como foram os últimos dias de Procópio. A escritora soube apenas que ela vivia ou vive numa cidade do interior de Goiás.
Como sua maior herança Procópio deixou-nos Bibi Ferreira, excepcional atriz, que soube corresponder ao que o pai esperava dela.
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