Matéria - 18 de julho

sexta-feira, 17 de julho de 2009
por Jornal A Voz da Serra

O teatro da existência

A cegueira é tragicamente democrática.

O silêncio do rei ou do escriba diante da cegueira, da dor, ou do amor tem

a mesma face.

Só tateando se consegue transpor

o liminar.

Valfredo Melo e Souza

Luigi Pirandello para exemplificar a realidade ilusória, a contradição humana na busca de uma verdade, montou a peça teatral Assim é se lhe parece, ocasião em que demonstra que um fato pode modificar-se em função do olhar de quem observa. Este é o mergulho que nos remete ao assunto de hoje.

Nesta direção temos a obra do escritor português José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira. O livro e a adaptação cinematográfica do romance homônimo, dirigida por Fernando Meireles, abrem a discussão. Em linguagem ficcional surge uma situação em que um vírus causador de cegueira ataca habitantes de uma cidade. A barbárie se instaura. A população em pânico enxerga só uma névoa branca e a vida comunitária se modifica por completo. Caem barreiras sociais e convenções. A cegueira é tragicamente democrática. O silêncio do rei ou do escriba diante da cegueira, da dor, ou do amor tem a mesma face. Só tateando se consegue transpor o liminar.

A perda da visão exerce um forte impacto na vida humana como a primeira informação a ser captada pelos neurônios. A ausência da visão aguça o imaginário. Exemplos fortes têm a presença de Tirésias o sábio cego, na tragédia grega, que esclarece a Édipo sobre sua má-sorte. As três irmãs ceguinhas de Campina Grande travestidas de atrizes em A pessoa é para o que nasce, curta metragem de Roberto Berliner. Também, o velho cego do folclore krahó, vítima de exclusão social e de mentiras.

No Ensaio de Saramago os contaminados são recolhidos num manicômio, sob quarentena, por ordem governamental e despidos das máscaras sociais. Um acúmulo de convenções, de usos, de véus, de intermediários, desaparece nos abismos e todos, inconscientes, julgam de conformidade com o invisível. Aí, dois caminhos se formam: no primeiro impera o egoísmo e oportunismo. Aqueles que o trilham resolvem tomar o poder, locupletando-se da desgraça alheia, vivenciando uma completa falta de ética. Um inferno se instaura. Caos. Forma-se uma quadrilha de cegos com todas as consequências: estupros, assassinatos, fome, frustrações, traições, enfim, cegos contra cegos. Acode-me uma lembrança do livro de Mateus 15:14, “Deixai-os; são cegos guias de cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão no barranco”.

No segundo grupo é vivenciada uma significativa experiência comunitária. A liderança não é imposta, é exercida pela pessoa com mais condições de escolher o que seria melhor para a comunidade. Aqui não há espaço para máscaras, para status, para preconceitos sociais ou raciais. À medida que a compreensão vai crescendo no grupo, aprimora-se o diálogo e a convivência acolhedora emerge.

Uma alegoria do mundo contemporâneo habitado por nós. Como dar o Salto de qualidade de vida que o ser humano, em qualquer parte do planeta globalizado almeja?

Relevante no cenário é a clareza, a sagacidade e a exuberância do estilo Saramago, que provoca no leitor um profundo convite à meditação.

Ao final, o leitor/expectador sente-se enxergando melhor neste teatro da existência humana e acolhe, sensibilizado, o convite à reflexão.

(*) – Jornalista e escritor.

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