Maurício Siaines
Mário José Bastos Jorge, o Marinho, hoje coordenador de projetos musicais da Secretaria Municipal de Cultura, nasceu em Nova Friburgo em 1956 em uma família de músicos e fez da música uma profissão. Seu pai e seu tio eram inicialmente percussionistas da Sociedade Musical Beneficente Euterpe Friburguense, o que o levou a ter grande intimidade com instrumentos de percussão desde a infância. Mais tarde, a família – Marinho, inclusive – se transferiu para a Sociedade Musical Beneficente Campesina Friburguense. Foi quando Marinho conheceu a escola de música da Campesina, onde iniciou seus estudos, em 1970, onde permaneceu até 2004, tendo sido presidente da banda por 14 anos. Embora afastado, em função de outras atividades que passou a desempenhar, considera-se um campesinista. Nesta entrevista a A VOZ DA SERRA, ele fala de seu rico currículo, de como viu a catástrofe de 12 de janeiro e sobre como a música pode ajudar a superar o trauma vivido pela cidade desde então.
A VOZ DASERRA - O que é ser campesinista ou euterpista?
Marinho – Desde criança, escutava meu pai falar das divergências musicais entre a Campesina e a Euterpe. No início, ainda criança, não cultuava essa diferença ... como eu posso chamar? ... de ideais. Mais tarde, na presidência da Campesina, pude entender isto um pouco melhor. A Campesina surgiu de uma dissidência da Euterpe, em 1870, em função do movimento republicano que se desenvolvia. A Euterpe ligava-se à monarquia. Hoje em dia, essa rivalidade está somente no campo da música, de quem consegue tocar melhor, de quem consegue fazer um espetáculo superior ao do outro. Mas houve época em que as bandas se dividiam de acordo com as bandeiras políticas da cidade. Vinham da adesão à república ou à monarquia, depois foi o alinhamento com a UDN (União Democrática Nacional) ou com o PSD (Partido Social Democrata). A Campesina se associava à UDN e a Euterpe ao PSD. Depois, a Euterpe se associou ao MDB e a Campesina à Arena. Com o pluripartidarismo elas mantiveram a tradição.
AVS – Em que momento você foi para o Corpo de Bombeiros?
Marinho – Eu sempre fui ligado ao movimento das bandas escolares. Sempre participei e organizei várias bandas em Nova Friburgo, do Colégio Modelo, do Colégio Nossa Senhora das Dores, do Colégio Jamil El-Jaick, do Educandário Miosótis, do Colégio Dom Pedro. Fui também funcionário efetivo da prefeitura. Ao mesmo tempo, estudava na Escola Villa-Lobos, no Rio, onde fazia o curso técnico de percussão e o curso teórico, também. Em 1986, participei de uma apresentação da Campesina em que o maestro convidado era do Corpo de Bombeiros Militar do Rio de Janeiro. Depois do concerto, esse maestro me perguntou se eu não gostaria de fazer prova para o Corpo de Bombeiros. Aí, então, me preparei, fui aprovado e me transferi para o Rio, onde atuava na Banda Sinfônica do Corpo de Bombeiros. Depois, iniciei o curso de graduação em percussão na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e comecei a trabalhar como músico convidado em algumas orquestras do Rio, na Filarmônica do Rio de Janeiro, na orquestra do Theatro Municipal e na própria orquestra da Escola de Música da UFRJ.
AVS – Você ficou, então, fora de Nova Friburgo nesse período?
Marinho – Não, eu permaneci em Friburgo. Eram idas e vindas diárias entre o Rio e Nova Friburgo. Isso aconteceu durante 22 anos. Uma vez, o ex-presidente da Campesina, Luís Gonzaga Emerick, me convidou para sucedê-lo na presidência da banda. Naquele momento, não aceitei, justamente por estar envolvido com todas essas atividades no Rio e não teria tempo para me dedicar à Campesina. Aceitei fazer parte do grupo que dirigia a banda até que, em 1991, tornei-me presidente.
AVS – Pelo que está contando, você é um músico e um educador. Hoje, a formação em música voltou a ser valorizada com a lei que criou a obrigatoriedade do ensino de música em escolas. Como você vê a importância da educação musical na formação de qualquer pessoa?
Marinho – Tenho muita esperança de que isto possa realmente se efetivar no Brasil. Sobretudo em Nova Friburgo, que é uma cidade essencialmente ligada a bandas de música. Chegamos a ter 11 bandas de música. Entre elas, três centenárias: a Euterpe Friburguense, a Campesina e a Euterpe Lumiarense, que retomou há pouco suas atividades. Nós chegamos a ter banda em São Pedro da Serra, em Amparo, na Fábrica de Rendas Arp, no Colégio Anchieta. Tínhamos ópera toda semana no Cine Teatro Leal. Isto no final do século 19 e início do século 20. Heitor Villa-Lobos vivia aqui em Nova Friburgo, aqui ele escreveu seu primeiro quarteto de cordas, foi aqui também que ele estreou nacionalmente, com um concerto. Então, Friburgo sempre teve essa vocação musical muito forte. Hoje temos aqui um equipamento muito importante que é a Escola Superior de Música da Universidade Candido Mendes, cujos frutos já começam a aparecer: muitos músicos da cidade e da região passaram a ter a oportunidade de se formarem aqui.
Novos talentos podem assim ser descobertos, na medida em que podemos oferecer ambientes musicais, a partir da escola, para a formação de pessoas, que podem se complementar nas escolas das bandas da cidade e na universidade.
AVS – Você falou na Euterpe Lumiarense, o que traz uma questão interessante: aquela região de Lumiar e São Pedro da Serra vive uma transição de um mundo agrícola para uma nova realidade que ainda não está muito clara qual seja. Como você vê o papel da música nesse tipo de passagem?
Marinho – Acho que ali a música pode ser um instrumento da mudança. Acho que o caminho passa pelas escolas da região, que precisam motivar seus alunos a participar dessa transformação. A Euterpe Lumiarense pode ser o veículo, ela pode propor essas mudanças, mas ela precisa que a comunidade esteja presente.
AVS – Nós acabamos de viver essa catástrofe das chuvas de janeiro, que fez um estrago semelhante ao de uma guerra, em uma cidade que tinha uma estabilidade social desde o início do século 20. E vem essa grande tragédia. Como você vê isto abalar a vida dos friburguenses?
Marinho – Em 1979, nós tivemos um episódio desse tipo em que 65 pessoas perderam a vida. Mais à frente, tivemos outros, mas com um número de vítimas menor. Agora foi uma proporção muito grande que nos deixou assustados. Mas não podemos sair os mesmos depois disto, temos que repensar nossa vida na cidade. De que forma estou me colocando dentro do contexto social da cidade? De que forma eu, como cidadão, posso ajudar a tornar a cidade um pouco melhor?
No dia seguinte, quando saí à rua, às 6h, comecei a observar nas pessoas um olhar de desespero e desorientação. Eu e minha esposa viemos caminhando em direção ao centro da cidade e fomos vendo que o problema era muito maior do que estávamos imaginando. Quando cheguei à praça [Getúlio Vargas] vi um cenário de guerra, os carros sobre a praça, muita lama, muito barulho de sirenes. Uma correria porque tinha acabado de cair um dos prédios da rua Cristina Ziede – e eu ainda não tinha essa informação. Não consigo falar disso tudo sem me emocionar. Por este motivo é que digo que não podemos sair disso sendo as mesmas pessoas. Se eu puder, como artista, me colocar a serviço de tornar as pessoas mais felizes, eu gostaria muito.
Sábado passado [26 de fevereiro] no Alto do Floresta, com a Orquestra da Grota. Grota é uma comunidade de Niterói. Estávamos lá, quando o maestro Márcio Salles falou que na orquestra havia alguns membros que estavam passando pelo mesmo problema, pessoas do Morro do Bumba, que ainda estavam desabrigadas. E eles estavam ali tocando para levar um pouco de arte, de conforto àquela comunidade. E eu vi no olhar deles que estavam felizes por fazer aquilo. Passaram o dia inteiro no Floresta e nós vimos como a comunidade ficou feliz por recebê-los. Algumas senhoras, com filhos, choravam e pediam que eles voltassem. É muito difícil falar. Eu senti e sinto ainda uma dor muito profunda, mas tenho esperança de que a cidade possa encontrar seu caminho, que esse medo que está espalhado nas pessoas possa se desfazer. Do mesmo modo como foi criada uma orquestra lá na Grota, em Niterói, por que não podemos fazer o mesmo aqui, em localidades como o Alto do Floresta, no Jardim Califórnia, no Dedé e tantos outros? Seriam oportunidades de socialização e de profissionalização.
Se observarmos que entre mortos e desaparecidos estamos perto de 600 pessoas, isto significa dizer que em cada 300 de nós, um perdeu a vida. Direta ou indiretamente, todos nós sofremos alguma interferência. O setor cultural também vai sofrer algum dano. Mas acho que é sobretudo no setor cultural que está a grande alavanca para a superação dessa situação. Porque é exatamente na manifestação cultural e artística que podemos levantar o moral do friburguense, sensibilizá-lo, reverenciar todos aqueles que perderam a vida. Acho que é uma questão de recriação, e também na área cultural.
AVS – Mas nessa recriação pode sair alguma coisa diferente, não é?
Marinho – Existe agora a possibilidade de se construírem novas oportunidades, de se desenvolverem novas opções. As propostas podem surgir exatamente nesse processo de recriação, porque o artista tem esse poder, porque ele é um ser que está em transformação o tempo todo.
AVS – Os Beatles surgiram 22 anos depois dos bombardeios às cidades inglesas, na Segunda Guerra Mundial. Eles também refletiam um desejo coletivo de mudanças. Isto acontece com o artistas de um modo geral, não acha?
Marinho – Exatamente. Ele tem o poder de propor uma mudança e de sensibilizar as pessoas para essa mudança. Os Beatles mudaram um conceito na forma de se vestir, de cortar os cabelos, na forma musical e ganharam o mundo. E mudaram uma parte dessa história.
AVS – Você não acha que essa vontade de criar sempre esteve presente na vida da cidade, mesmo que estivesse dentro de uma espécie de nevoeiro que atrapalhava sua visibilidade?
Marinho – Eu falo mais da música porque é o segmento que eu acompanho mais de perto, mas Friburgo desponta nas artes plásticas, nas artes cênicas, em todos os segmentos de artes. Acho que Friburgo tem esse potencial muito grande. Essas manifestações estão o tempo todo em efervescência, esse processo pode não estar muito claro para nossos olhos, mas ele existe e de surgem propostas está de novas criações. Existe aqui um grupo de teatro muito importante, o Gama (Grupo de Arte, Movimento e Ação), na área de cinema existe a família Farias e, agora, dois festivais de cinema, o Cineamor e o Fricine, tem o Festival Internacional de Inverno, na música. Também tenho essa impressão a respeito dessa criatividade local, que está sempre em atividade.
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