Marcelo Galvão: "O cinema brasileiro encontra novos caminhos"

Primeiro cineasta a ter um filme brasileiro produzido pela Netflix fala com exclusividade para A VOZ DA SERRA
segunda-feira, 11 de dezembro de 2017
por Leo Arturius
Marcelo Galvão (à direita) com Will Roberts (de preto), Diogo Morgado e Etienne Chicot (de costas), no set de O Matador (Divulgação)
Marcelo Galvão (à direita) com Will Roberts (de preto), Diogo Morgado e Etienne Chicot (de costas), no set de O Matador (Divulgação)

A Netflix produziu e distribuiu o filme brasileiro “O Matador”, escrito e dirigido pelo cineasta carioca Marcelo Galvão. A história se passa no início do século passado, no Nordeste brasileiro, com temática genuinamente brasileira, o cangaço. A grande novidade é que já está disponível para o público de qualquer país, desde o dia 10 novembro, o primeiro filme nacional de ficção da maior produtora de streaming do mundo.

Sem receio de ousar ao tratar de temáticas e estéticas diferentes em seu sétimo longa-metragem, o diretor se tornou o primeiro cineasta a ter um filme brasileiro produzido pela Netflix. Já em 2012, Marcelo conseguiu inovar com o bonito e sensível filme “Colegas”, que conta a história de três amigos que vivem juntos em um instituto para portadores da síndrome de Down e decidem fugir para se aventurar e realizar o sonho de cada um.

Convidado para o 45ª Festival de Gramado, deste ano, concorreu ao Troféu Kikito de Melhor Longa-metragem, entre outras categorias. Talvez tenha sido a única exibição na tela grande, visto que a distribuição é exclusiva da Netflix para seu sistema streaming, e deixou o evento com dois troféus: melhor fotografia, para Fabrício Tadeu; e melhor trilha musical, para Ed Côrtes.

A Netflix percebeu o potencial do mercado brasileiro e vem investindo em produções nacionais. Anteriormente, foram realizados a série “3%” e o documentário “Laerte-se”, e agora chega a vez do cinema de ficção com “O Matador”.

Marcelo Galvão estudou na conceituada escola americana de cinema New York Film Academy, e em 2001 fundou a produtora Gatacine (SP), onde fincou a base para suas produções. Dividido entre trabalhos nos EUA e no Brasil, o cineasta concedeu esta entrevista exclusiva para A VOZ DA SERRA, por e-mail.

 

A VOZ DA SERRA: Você ousou ao trazer de volta uma história genuinamente brasileira, um tema deixado de lado, faz tempo: o cangaço. Como foi o processo de convencimento para a Netflix apostar no estilo faroeste brasileiro?

Marcelo Galvão: Fui apresentá-lo no LABRFF (Los Angeles Brazilian Film Festival) numa rodada de pitches para vários players contanto a história desse filme. A Carolina Vianna, que trabalhava na Netflix, assistiu e gostou muito do projeto, pediu para mandar o roteiro. Ela pirou no roteiro, amou e disse: vamos fazer! Não foi difícil convencer, o próprio roteiro fez esse trabalho.

 

AVS: “O Matador” mostra várias características do sertão de época: matadores, violência contra a mulher, compra de terras por estrangeiros, seca. Houve muita pesquisa para unir esses elementos para conduzir o público através da realidade brasileira?

Esse universo é muito conhecido da gente, pelo menos do pessoal que gosta de cinema. Revi vários filmes, como “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, do Glauber Rocha, “Os Fuzis”, do Ruy Guerra, filmes que retratam o cangaceiro, a época de Dadá e Corisco. Fiz pesquisa aprofundada e um ano antes visitei o sertão nordestino, com o assistente de direção e o diretor de arte. Passamos 15 dias conhecendo todo sertão para entender um pouco como é essa prosódia e o jeito de viver dos cangaceiros. Já filmei muito no sertão nordestino e outros cantos do país devido o trabalho com publicidade, mas foi bom passar esse tempo para pensar na logística de produção.

 

AVS: As locações vão desde Campinas até Pernambuco. Como o filme se passa na primeira metade do século passado, quais foram as suas principais preocupações com as locações?

A maior preocupação com as locações foi “casar” Campinas com Pernambuco. Encontramos uma fazenda legal em Campinas para fazer a casa do Francês (Phil Miler), e depois no CGI (imagens geradas por computador) aumentamos seu tamanho. A maior preocupação era Campinas ter o universo seco devido sua vegetação e acho que funcionou bem. Em São Paulo foi mais tranquilo, porque foram cenas internas.   

 

AVS: A caracterização do cangaço pode levar a interpretações equivocadas, folclóricas. Como foi o trabalho de construção do personagem principal, Cabeleira (Diogo Morgado)?

Isso me preocupava bastante, porque o cangaço tem um guarda-roupa meio folclórico. Achava importante reduzir ao máximo. Diminui chapéus que tinham aquelas indumentárias caracteristicas, símbolos de poder. Mantive a essência, não inventei nada, apenas deixei mais bonito. Acho que esse foi um acerto. A concepção do Cabeleira partiu do trabalho conjunto, meu e do Diogo Morgado. Ele passou uns dias vivendo no Nordeste com o povo local, dormindo no chão, andando a cavalo, aprendendo a atirar, a limpar um bicho, fez um laboratório legal. O trabalho foi construído aos poucos. No momento em que ele enviou uma mensagem mostrando o teste do personagem, olhei e disse: esse cara vai ser o nosso Cabeleira.

 

AVS: A produção brasileira, em sua maioria, depende de financiamento, de editais públicos. A Netflix se tornou grande produtora de conteúdo original. Como você vê o streaming? Ele pode ser um caminho para mais produções nacionais e uma melhor distribuição?

A distribuição já é um fato concreto. No caso da Netflix, são mais de 190 países, mais de 20 línguas diferentes e mais de 110 milhões de usuários de público potencial para assistir esse filme. A distribuição é maior do que qualquer cinema. Em termos de financiamento, vai ser mais fácil porque existe mais demanda, quanto mais, melhor para toda cadeia que trabalha na área. Para o público também vai ser melhor, vai ter mais opções.

 

AVS: Em maio deste ano, o Festival de Cannes gerou polêmica ao exibir os filmes "Okja" e "The Meyerowitz stories", ambos da Netflix. Antes do lançamento de “O Matador”, há duas semanas, ele foi exibido no Festival de Gramado, em agosto, de onde saiu com dois prêmios. Da mesma forma que os dois primeiros citados, seu filme não vai passar em salas de cinema convencionais e comerciais. Como foi para você, como realizador de um filme da Netflix, tê-lo exibido num festival em meio a essa discussão?

Acho essa discussão boba, aos poucos as pessoas vão entender que isso também é cinema. Você não precisa ir a uma sala num shopping, comprar uma pipoca e sentar numa cadeira confortável para assistir um filme. Cinema é ritual catártico, onde você senta com amigos, projeta num telão e fica durante duas horas sem falar com ninguém, sem levantar e viajar na história que está passando ali. Isso é cinema. Fazia exibição de filme na minha produtora, pegava um filme de amigo e passava, as pessoas assistiam e depois debatiam. Não acho que o streaming vai acabar com o cinema. Falaram que meu filme não iria para o cinema. Mas, foi. Foi para o Festival de Gramado, assisti na tela grande. Foi para a Mostra de São Paulo e teve pré-estreia. O filme tem potencial para ser exibido em qualquer lugar, a qualquer hora, sem preocupação com esse lado mais comercial das salas de cinema.   

 

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