Marcelo Cerqueira: uma vida cheia de histórias para contar

terça-feira, 16 de abril de 2013
por Dalva Ventura
Marcelo Cerqueira: uma vida cheia de histórias para contar
Marcelo Cerqueira: uma vida cheia de histórias para contar

Numa tarde chuvosa de sábado, eu e minha colega de redação, Ana Borges, nos dirigimos até a Alameda Conde D´Eu, no Vale dos Pinheiros, onde fica a acolhedora casa do advogado e político Marcelo Cerqueira. Ali passamos mais de três horas ouvindo as histórias e lembranças desta personalidade tão importante na história recente do país e tão identificada com Nova Friburgo, onde passou os anos dourados de sua juventude.

Desde então, ele jamais se desligou da cidade. Em 1950 Marcelo veio estudar no extinto Colégio Nova Friburgo, a saudosa Fundação Getúlio Vargas, e se orgulha de ter integrado a primeira turma. É membro da Associação de Ex-Alunos do colégio e faz questão de desfilar todos os anos no 7 de Setembro. 

O vínculo com o colégio se estendeu à cidade que elegeu como sua. Há cerca de dez anos Cerqueira comprou um belo chalé, “lugar de sonhos, onde colho rosas e planto livros”, diz. Ali ele passa os fins de semana e pretende se mudar de vez, um dia, “depois que ficar velho”, retruca com bom humor este “jovem senhor”, do alto de seus 74 anos. 

A cada fim de semana bate ponto na feijoada de sábado do Bar América, onde se inteira dos acontecimentos da cidade. Em seguida vai curtir as delícias do lar friburguense. Engana-se, porém, quem acha que aqui ele descansa. O homem não para. Aproveita o silêncio e o clima da serra para ler, escrever e estudar. Muitos de seus livros foram concluídos aqui. Cerqueira já publicou mais de 20 livros, muitos editados em outros países, a maioria de doutrina jurídica, além de teses, ficção, crônicas e até poesia.           

Um dos advogados mais atuantes do país na época da ditadura, Cerqueira é dono de extensa biografia. Recebeu o prêmio “Faz Diferença” junto com seu grande amigo, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Eros Grau, que ele chama de “doce bárbaro” e que por diversas vezes veio a Nova Friburgo, hospedando-se na sua casa. Outro amigo fraterno de Marcelo é o ex-presidente do STF, Ayres Brito, para ele simplesmente “Carlinhos”.   

Para quem não conhece a trajetória de nosso entrevistado, vale destacar que Marcelo Cerqueira já foi presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), do Centro Popular de Cultura (CPC) e vice-presidente da União Nacional de Estudantes. Participa ativamente da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democráticos, que reúne a elite do pensamento democrático do país. 

Foi deputado federal pelo PMDB do Rio de Janeiro de 1979 a 1983, fazendo parte do chamado “grupo autêntico”, com integrantes da ala mais à esquerda do partido.  Defendeu mais de mais de mil pessoas acusadas com base na Lei de Segurança Nacional e atuou em casos de desaparecidos políticos. Em boa hora, acaba de ser nomeado para integrar a Comissão Nacional da Verdade, que investiga as violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil. 

Nesta entrevista com sabor de bate-papo, Marcelo Cerqueira fala um pouco de sua vida, sua carreira e de seu vínculo afetivo com nossa cidade. 

A VOZ DA SERRA – Como começou seu vínculo com Nova Friburgo? 

MARCELO CERQUEIRA – Cursei o antigo ginasial e o primeiro ano do clássico como interno na Fundação e guardo boas lembranças do colégio. Lembro até hoje da primeira vez que visitei a cidade junto com minha mãe, que veio em busca de informações sobre a já festejada excelência do curso que estava para abrir. Como educadora, ela saiu convencida. O problema era o custo, para nós, proibitivo. Basta dizer que meu pai ganhava por ano o que o colégio cobrava por mês. Eu só estudei na Fundação porque fiz uma prova e ganhei bolsa. 

AVS – Conte-nos um pouco de suas lembranças daquele tempo...

Cerqueira – A barca da Cantareira nos levava do Rio a Niterói, onde tomávamos o trem para Friburgo. Tudo me encantava. A merenda que levávamos para a viagem, o guarda-pó que nos defendia das fagulhas da ‘maria fumaça’, a paisagem nova, os rios, os bois, os campos e mais campos, alguma desolação, casinholas aqui e ali. Saltávamos na estação e pegávamos o lotação para o colégio. O trem era a maior novidade. Gostava de descer para a cidade nos domingos para esperar o trem passar enquanto admirávamos as meninas fazendo o ‘footing’. Se fechar os olhos eu ainda posso vê-las passando, para cá e para lá, nas alamedas da praça. 

AVS – Saudades?

Cerqueira - Não sou muito de saudosismo, mas guardo boas recordações daquele tempo. A visão do colégio, uma construção, talvez normanda, que antes abrigaria o Hotel Cascata, destinado ao jogo, depois proibido por dona Santinha, mulher do general Dutra, no Estado Novo, o cheiro do mato e da mobília nova, os quartos com dois beliches cada um – fui colega de quarto do Marcio Braga e do Carlos Eduardo Dolabella – o refeitório, o campo de futebol – modéstia à parte eu jogava muito bem - e as montanhas que circundavam o colégio e que emprestavam ao todo uma imensa magia e encantamento. Agora o colégio fechou, alguns morreram... e para a gente desfilar no 7 de Setembro temos que contratar uma banda (risos).

AVS – Depois que saiu do colégio você continuou frequentando a cidade? 

Cerqueira – Nunca deixei de vir a Friburgo. Nos primeiros anos, hospedava-me na pensão da dona Mariquinha, na Rua Monsenhor Miranda, que até hoje serve uma comida maravilhosa. Depois, já melhor de vida, ficava no Park Hotel, dirigido pela legendária dona Irene, que fazia os doces mais maravilhosos que já comi na vida. 

 

AVS – O senhor, que conheceu Nova Friburgo nos bons tempos, o que acha da cidade hoje? 

Cerqueira - Claro que não dá para comparar com a minha época, mas, sinceramente, não acho a cidade tão abandonada e suja quanto se diz. Ando bastante pelo Centro e não vejo isso. A tragédia de 2011 dizimou a cidade, mas a natureza já está se recuperando. Claro que na periferia a situação ainda é crítica. Outro dia passei pelo Córrego Dantas e aquilo lá devia mudar de nome e chamar “Lago Dantas”! 

 

AVS – O senhor chegou a sair do país na época da ditadura?

Cerqueira – Claro. Eu militava no movimento estudantil. Fui, inclusive, vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), com José Serra na presidência. Quando os militares tomaram a sede da UNE e incendiaram o prédio, fomos todos presos. Nessa época fui obrigado a viver na clandestinidade e acabei tendo que sair do país. No exílio fiquei inicialmente na Bolívia, depois no Chile e, por fim, na Europa. Acabei conseguindo terminar o curso de Direito. Anos depois, porém, fui preso novamente. Só então comecei a atuar como advogado, para me defender e a meus amigos. 

 

AVS – Como assim? 

Cerqueira – Eu não pensava em ser advogado. Fui revisor do Diário de Notícias e queria ser repórter. Trabalhei na Última Hora, no Globo... Mas a vida vai levando a gente. O diploma de advocacia eu só tive porque meu pai fazia questão. Meu irmão mais velho é da Marinha, eu tinha que ser doutor. 

 

AVS - Quantos presos políticos você defendeu? Quais os casos mais marcantes? 

Cerqueira - Cerca de dois mil, contando também artistas. O CPDOC atribuiu mil, mas não contabilizou as apelações e habeas corpus. Mas, entre os mais conhecidos, destaco os processos de Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Leila Diniz, que era minha cunhada (Cerqueira foi casado em primeiras núpcias com a irmã dela, a cientista social Eny Diniz).  

 

AVS – Algum de Nova Friburgo?

Cerqueira - Não me lembro de ter defendido ninguém de Friburgo. Se tivesse eu saberia. Jamais esqueci um cliente meu. Curioso, porque Friburgo tinha um grande movimento sindical. A Ypu estava aberta, a Arp, a Filó, havia uma indústria metalúrgica importante, a ferrovia... Além disso, o partido era forte na cidade, o secretário era o metalúrgico Pimpão. Mas até hoje encontro gente que chega perto de mim dizendo que fui seu advogado. Eu não desminto, mas por dentro acho graça. Hoje é um laurel ter sido preso político, uma honra. 

AVS – O senhor também atuou no caso do Bateau Mouche?

Cerqueira – Acompanhei a auditoria militar que indiciou 12 oficiais da Marinha por responsabilidade no naufrágio que matou 55 pessoas na noite de Ano-Novo de 1989. Também fui advogado de acusação, representando familiares de vítimas. O processo criminal resultou na condenação dos proprietários do Bateau Mouche. Já a auditoria da Marinha sentenciou um tenente e um cabo. Relatei as ambiguidades e omissões nos inquéritos policiais militares no meu livro “Bateau Mouche: o naufrágio do processo”.

AVS – Ainda milita no Direito?

Cerqueira – Sim, mas hoje em dia só nos tribunais superiores. Mantenho meu escritório de advocacia no Rio, então vou ao centro da cidade às terças, quartas e quintas. Nos fins de semana, corro para Friburgo. 

AVS – Com tantos livros publicados, ainda não foi convidado para a Academia Brasileira de Letras?

Cerqueira – Pois é... Se servir de consolo, já fui convidado duas vezes para a Academia Friburguense de Letras e, embora tenha aceito, acho que esqueceram do convite (risos). A Câmara de Vereadores também ia me dar o título de Cidadão Friburguense, mas ficou só no convite. 

AVS – E a Comissão da Verdade? Está animado?

Cerqueira - Vamos ver, não é? Por enquanto é cedo para dizer qualquer coisa.  

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