Robério José Canto
Este artigo tenta ser uma reflexão, ainda que muito superficial, sobre o sentido da literatura na existência do ser humano, esse "bicho na terra tão pequeno”, como o chamou Camões em célebre passagem de Os Lusíadas.
Sabemos que a arte tem um fim em si mesma, independentemente de qualquer utilidade que lhe queiramos dar por acréscimo ao prazer estético que ela proporciona. Mas ela é também instrumento de fruição e catarse, forma de conhecimento e tomada de posição em face da realidade. Seja qual for, no entanto, o aspecto sob o qual as consideremos, as manifestações artísticas nascem das mais profundas necessidades humanas: comunicar-se com os semelhantes, expressar sentimentos, emoções e ideias, buscar compreender o mundo e a vida. Para isso, contraditoriamente, o escritor como que se desliga da realidade e, a partir dela, cria uma suprarrealidade, a qual passa a existir no texto construído e somente nele.
Mas essa arquitetura é tão verdadeira, é tão concreto esse mundo construído com palavras, que não raro altera nossa compreensão do próprio mundo real de onde proveio. Literatura é, pois, o falso e o verdadeiro tão interpenetrados que se torna impossível separar uma coisa da outra. Literatura é, pois, citando Clarice Lispector, "uma verdade inventada”. Se é verdade, como pode ser inventada? Se é inventada, como pode ser verdade? Eis o mistério da literatura e, de resto, de toda forma de arte. Bem disse Manuel de Barros sobre sua poesia: "Só dez por cento é mentira. O resto é invenção”.
É bem limitado o nosso conhecimento direto da realidade. Ainda nas pessoas que viveram muitas experiências, infinitas outras ficaram de fora de suas vivências. A arte nos permite visitar esses mundos nos quais nunca pisamos de fato. E a literatura é a mais eficiente ferramenta de que dispomos na tarefa de ampliar horizontes, abrir os olhos diante desses horizontes, alargar o coração para abrigar esses horizontes.
Fabiano, Sinhá Vitória, Baleia e os Meninos, criaturas de Graciliano Ramos, ramos de Graciliano, confrontam nossa consciência leitora com o sofrimento de tantos irmãos nossos, os severinos de João Cabral de Melo Neto, gente que morre "de morte igual,/ mesma morte severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia”. E, no entanto, diz-nos o mesmo poeta, que cada menino severino, ao nascer, é "tão belo como um sim/ numa sala negativa”.
Quem poderá ficar insensível à perturbadora construção psicológica dos personagens, ou à sólida edificação verbal dos cenários nos romances de José Saramago? Ou não se perturbará diante das fraquezas humanas retratadas por Machado de Assis nas incertezas e ambiguidades de Capitu e Bentinho, na loucura mansa de Quincas Borba, ou no humor irreverente de Brás Cubas? Como não se espantar diante da genialidade de Fernando Pessoa, a quem parecem se referir os versos de Mário de Andrade: "Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cincoenta”. Fernando Pessoa que, não satisfeito em ser ele mesmo, foi muitos outros, a nos dizer, pela voz de Álvaro de Campos: "Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
A palavra literária é polivalente, isto é, não significa nada de exato e preciso, porque significa, para cada um que a lê, algo particular, pessoal e intransferível. Lembremo-nos de Ferreira Gullar: "Uma parte de mim é todo mundo/ outra parte é ninguém,/ fundo sem fundo”. Quem nunca se sentiu tantas vezes pleno, vazio, tantas vezes? E não é a causa de tais sentimentos diferente para cada um de nós? Doença grave, desilusão amorosa, dificuldade financeira, sofrimentos — reais ou imaginários, ambos tão dolorosos. Qual é, pois, o significado deste "fundo sem fundo” que o poeta coloca à nossa frente? A cada um de nós cabe decifrar esse claro enigma.
A ânsia de ir sempre além de seus limites e de tudo que o limita é própria do ser humano. A arte nos ajuda a transcender e, graças ao poder da inteligência e da imaginação, mergulhar no fundo mais fundo do coração, ou voar na vastidão insondável do universo. Achar, enfim, uma explicação e um sentido para "bichos na terra tão pequenos”. Citemos Ferreira Gullar mais uma vez: "A arte existe porque a vida não basta”.
Mas, se "viver é muito perigoso”, como constatou o Riobaldo de Guimarães Rosa, que isso não nos impeça de seguir o conselho de Horácio: carpe diem. Sim, aproveitar o dia, aproveitar a vida que sempre renasce, é sempre nova e diferente. A literatura é uma poderosa aliada nessa luta para nos tornarmos a cada dia outro, e outro a cada dia melhor. Um outro capaz de estar em íntima ligação com todas as formas de vida, com toda a riqueza, beleza e mistério do universo, em íntima ligação solidária com todos os homens e mulheres; ligado, enfim, ao sonho e à busca de um mundo mais belo, mais sereno, mais democrático e mais justo.
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