Gustavo Melo
Recebo uma foto do meu afilhado, do alto dos seus quatro meses de existência, e o seu olhar azul me dilacera.
Está tudo ali: curiosidade, encanto, ironia, tranquilidade, amor. Ele não conhece ainda os nomes dos sentimentos, mas já sabe senti-los. Na forma com que encara a câmera — e o mundo que lhe cerca — existe uma grande verdade: Arthur é um pequeno ser dotado de um amplo leque de possibilidades. Ele tem o infinito diante de si; não tem prisões, não tem amarras, não tem medos. Pode ser aquilo que quiser. No momento em que ainda conhece e se ambienta com a realidade, ele é uma tábua em branco esperando para escrever o seu próprio destino.
Existe algo mágico em ser uma criatura cheia de possibilidades. Acordar todo o dia e pensar que podemos mudar de rumo a qualquer momento, sem maiores dúvidas ou dores. Talvez consigamos distinguir isto com mais clareza nas crianças: a ideia estarrecedora de que elas podem ser o que quiserem, princesas ou vilãs, heróis ou mentecaptos, vítimas ou agressores.
Pergunto-me se somente crianças têm esta capacidade de reinventarem seu destino a cada manhã. A sensação de que perdi o momento novamente é avassaladora, assim como a ideia de que as responsabilidades enrolaram seus tentáculos ao meu redor e me prenderam em um círculo vicioso, regrando a minha vida com normas desconhecidas diante das quais me submeto.
No entanto, lembro de Ortega y Gasset e me sinto melhor. Foi ele quem disse, em A Rebelião das Massas, que "a nossa vida, como um repertório de possibilidades, é magnífica, exuberante e superior a todas as outras vidas historicamente conhecidas. (...
) É mais vida que todas as vidas, e por isso mesmo mais problemática. Não pode orientar-se no pretérito. Tem de inventar o seu próprio destino”.
Pessoas que se orientam pelo passado são incapazes de mudar o destino. Temos a ilusão de que a nossa vida deixou de ter possibilidades para adquirir certezas e prisões, mas nos iludimos: sempre existe a possibilidade de mudar. No jardim dos caminhos que se bifurcam, não podemos ser como o cavalo, que olha só a estrada na sua frente, e sim como o lince, dotado de visão periférica e análise rápida de situações.
Gosto muito da ideia de nossa vida ser maior do que todas as vidas. Quando olho a riqueza do meu dia a dia e os encantamentos que insistem em se suceder, percebo que minha vida é maior do que eu mesmo. Não é possível que tantos eventos e pensamentos caibam dentro da minha consciência, mas — e isto é incrível — cabem, ainda que transbordem para as vidas alheias. Ser uma criatura cheia de possibilidades implica dizer que sempre podemos começar de novo, e talvez esta seja a parte mais repugnante da morte: não é somente um indivíduo que morre, mas sim todo o universo de possibilidades que ele continha. Já diz o Talmude que, quem salva uma vida, salva o mundo todo, e o mesmo pode ser dito da morte: quando alguém morre, todo um mundo morre com ele.
(...)
O próprio Ortega y Gasset reconhece o paradoxo de sermos pessoas livres, mas obrigadas a decidir a todo momento, quando diz "surpreendente condição da nossa vida! Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Nem um só instante se deixa descansar a nossa atividade de decisão. Inclusive quando desesperados nos abandonamos ao que queira vir, e decidimos não decidir”.
(...)
GUSTAVO MELO CZEKSTER nasceu em Porto Alegre, em 1976. Cursou a oficina de
criação literária de Luiz Antonio de Assis Brasil em 2000 e a de Léa Masina em 2001.
É advogado e mestre em Literatura Comparada pela UFRGS. Fonte: Blog Homem Despedaçado.
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