Robério José Canto
Em todo ramo de atividade humana acontece, mas não com frequência, o surgimento de talentos extraordinários.
Foi o que ocorreu, na literatura brasileira, com João Guimarães Rosa, que ocupa lugar de destaque no pequeno grupo dos escritores diante dos quais mesmo os melhores não são mais do que bons ou ótimos.
Quando Sagarana foi publicado, a crítica e os leitores se deram conta do surgimento de um escritor que reinventava o regionalismo e abria novos caminhos para a literatura brasileira.
Na obra de Guimarães Rosa, o sertão de Minas Gerais, Bahia e Goiás é o cenário onde se desenrola a ação e se desvelam a fala, as crenças e os valores do povo que ali vive. Esse foco numa determinada região e num tipo de gente é, por isso mesmo, profundamente regional, sendo, ao mesmo tempo, profundamente universal, por revelar o drama humano, sempre tão igual, em todo tempo e lugar. Por isso, Riobaldo, personagem de "Grande Sertão – Veredas” pode dizer que "o sertão está em toda parte”, ou que "o sertão é do tamanho do mundo”.
Profundas questões existenciais subjazem na narrativa rosiana. Honra e lealdade, amor e morte, o bem e o mal, a existência (ou não) de Deus e do Diabo, traição e justiça, tudo isso perpassa a obra de Guimarães Rosa.
Para compor essa obra que impactou o Brasil e que no estrangeiro conquistou leitores apaixonados, Rosa criou um verdadeiro dialeto, baseado na observação da vida e do falar do homem do interior, na sua convivência com aquele povo e com aquela região e, acima de tudo, na sua capacidade de perceber, inventar e reinventar palavras e modos de dizer as coisas.
Pensemos em várias maneiras com que podemos expressar uma ideia. Guimarães Rosa vai fazê-lo de um modo novo, diferente, surpreendente. No entanto, tão lógico e transparente, que somos forçados a exclamar: "Mas é assim mesmo!” Por exemplo, falando de uma festa, não diz que lá estavam o padre e o sacristão que o acompanhava, mas menciona "o padre, o menino do Padre que sacristava”. Quando Riobaldo quer saber quantos são os adversários com quem vai se defrontar, pergunta: "A cambada dos Judas, aumentável, a corja! – "A tantos quantos” – eu pondo meu perguntar. – "Os muitos! Uma monarquia deles...” os vaqueiros respondendo”. E assim explica sua compaixão por Zé Bebelo, apesar dos defeitos que este possa ter: "O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente”.
Na verdadeira epopeia que é "Grande Sertão – Veredas”, o sertão é metonímia do mundo: parte pelo todo; e veredas, metáfora da vida: a vida que também é travessia. Atravessá-los — o sertão e a vida — requer valentia e determinação, pois, como nos diz Riobaldo: "O que a vida quer da gente é coragem”.
Que qualidades excepcionais possui a escrita de Guimarães Rosa, capaz de surpreender e encantar os mais exigentes críticos e leitores? Alguns exemplos.
Aliterações, rimas, ritmos, reiterações e outros recursos próprios da poesia: "... e eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro – o rio”
Neologismos: "Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam o nome dele – dizem só: O Que-Diga”
Uso de diminutivos: "Você me ensinazinho a dansar, Chica?”
Rupturas sintáticas: "Tempo virá, que se saiba”
Aforismos: "Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”
Sugestão de leituras que permitem avançar,
passo a passo, pelo universo rosiano:
Do livro Primeiras Estórias:
Desenredo/ Famigerado / Os irmãos Dagobé / Soroco, sua mãe, sua filha / O cavalo que bebia cerveja / A terceira margem do rio.
Do livro Sagarana:
O burrinho pedrês / A hora e a vez de Augusto Matraga.
Do livro Corpo de baile:
Miguilim (Campo Geral) e Manuelzão (Uma história de amor).
E, finalmente, Grande sertão – Veredas.
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