A língua como patrimônio cultural

A língua nacional é celebrada neste dia 21 de maio. E, como disse Confúcio, sem uma língua comum não se podem concluir os negócios
sábado, 21 de maio de 2016
por Ana Blue
A língua como patrimônio cultural
Há pouco mais de um ano, quando eucaliptos centenários da Praça Getúlio Vargas foram podados, alguns cortados, uma parte significativa da população friburguense soube, ou se lembrou, naquele momento, que todo o conjunto arquitetônico projetado por Auguste Glaziou em 1881 foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1972. O tombamento é uma espécie de reconhecimento do valor histórico de um bem, ato que o transforma em patrimônio oficial e institui regime jurídico especial de propriedade, levando em conta sua função social. A praça figura, então, no rol de bens culturais que tiveram sua importância histórica, artística e cultural reconhecida — bandeira esta que foi levantada e defendida fervorosamente por parte da população quando da operação de poda e corte das árvores.

Depois de duas semanas de carne branca e uma eventual troca dos garçons, elas ouviram melhor. Era carne de gado.
Por patrimônio, semanticamente, entende-se o conjunto de bens, direitos e deveres pertencentes a uma pessoa, física ou jurídica. O termo vem do latim patrimonium (patri, pai + monium, recebido) e está diretamente ligado ao conceito de herança, o que se passa de pai para filho ou de geração para geração. Mas uma praça tida como patrimônio cultural denota mais que reconhecimento de sua importância material (bancos, árvores, coreto): nela passeiam indivíduos de diversas gerações, com seus anseios, suas tradições orais, suas histórias. A Unesco, Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, por exemplo, afirma que é amplamente reconhecida a importância de promover e proteger a memória e as manifestações culturais representadas, em todo o mundo, por monumentos, sítios históricos e paisagens culturais, mas ressalta que não só de aspectos físicos se constitui a cultura de um povo. Há muito mais, contido nas tradições, no folclore, nos saberes, nas línguas, nas festas e em diversos outros aspectos e manifestações, transmitidos oral ou gestualmente, recriados coletivamente e modificados ao longo do tempo. Para muitas pessoas, especialmente as minorias étnicas e os povos indígenas, o patrimônio imaterial é uma fonte de identidade e carrega a sua própria história. A filosofia, os valores e formas de pensar refletidos nas línguas, tradições orais e diversas manifestações culturais constituem o fundamento da vida comunitária. 
    
Caipira, tupi, talian: quantos Brasis há no Brasil?

A língua é um organismo vivo, mutável e que evolui. No caso da formação do idioma português, que se originou das modificações introduzidas no latim vulgar no oeste da Península Ibérica, muitos povos deram sua contribuição, como os celtas e os fenícios. E, ao chegar ao recém-colonizado Brasil, a língua sofreu ainda a influência dos idiomas indígenas, principalmente o tupi. Dessa forma, durante aproximadamente dois séculos, falou-se no país uma mistura da língua tupi simpli­ficada e do português, chamada língua geral. Com o tem­po, mais portugueses e africanos escravizados vieram, o que fez com que a língua geral fosse desa­parecendo e o português passasse a ser o idioma pre­dominante. E a língua geral foi banida pelo Marquês de Pombal em 1758, caindo em pleno processo de desuso e decadência a partir de então. 


Na contramão, atualmente, diversas cidades brasileiras têm reconhecido o seu falar como patrimônio cultural imaterial. O “caipiracicabano”, linguajar falado em Piracicaba (SP), no interior de São Paulo, que já é conhecido no Brasil afora pelo “erre” puxado e ênfase nas vogais, traços característicos do sotaque dos moradores da cidade, vai ser reconhecido como patrimônio imaterial. O Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural (Codepac) do município abriu, no último dia 13, o processo de tombamento da variedade linguística regional. Outro caso relevante, e mais anigo, é o talian, uma língua forjada a partir do encontro, ocorrido em terras brasileiras, de imigrantes falantes de dialetos da região do Vêneto, na atual Itália, e que possui expressivo contingente de falantes no sul do Brasil — mais encontrados nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Há municípios, como Serafina Correa, no Rio Grande do Sul, em que o talian é língua oficial, assim como o português. Aliás, o idioma é patrimônio cultural imaterial oficial naquele estado.

Minha língua, meu sotaque, minha pátria variável - A dor e a delícia de colocar dois erres onde tem um e onde tem dois, botar quatro

Ana Blue (colaboração: Kelly Cristine)

A mãe e as duas filhas, de férias em Belém do Pará, educadamente dispostas em seus lugares à mesa, esperam o almoço chegar. Há duas semanas elas comem as mesmas opções de carne no restaurante do hotel: frango ou peixe. Se recusam a comer carne de gato, que é a terceira opção oferecida pelo tímido garçom. Onde já se viu? Claro, sabiam que o Rio de Janeiro e o Pará teriam lá suas especificidades — linguísticas, comportamentais, culturais, gastronômicas — mas carne de gato? Era demais. Só que, depois de duas semanas de carne branca e uma eventual troca dos garçons, elas ouviram melhor. Era carne de gado.
Aconteceu comigo, há mais de 15 anos. A viagem de férias era mais que férias — era a possibilidade de conhecer o novo universo do qual nosso pai fazia parte agora. Caminhoneiro, morava lá no Pará há alguns anos, e esta era a primeira visita que fazíamos em seu habitat agora natural. As cores, as paisagens, as pessoas, as comidas, tudo era diferente do que conhecíamos, mas o modo de falar era a característica mais destoante entre nós, as cariocas, e eles, os paraenses. Eles tinham carne de gado. E muriçocas. E Ver o Peso.

A viagem reservou muitos causos desse tipo. Deixei que um atendente acreditasse que eu era do “subúrbio” porque não consegui fazê-lo falar “Friburgo” de jeito nenhum. Falei “pupuaçu” por meses. A primeira sílaba tônica do nome da minha irmã fazia com que as átonas seguintes sumissem, virando Késsila um monossílabo Kés. E para a criança que até então nunca tinha saído do Rio de Janeiro, língua virou de repente muito mais que aprender português e inglês na escola por obrigação. Eu estava, finalmente e realmente, falando outra língua.

Biscoito ou bolacha: tá todo mundo certo

Em Friburgo, qualquer garçom teria oferecido carne de boi. Ou, apenas, carne vermelha. Um exemplo simples de variação linguística: como o território brasileiro é enorme, como cada região tem seus próprios costumes e em algumas cidades há, ainda, forte influência dos países colonizadores, é natural que a maneira de os brasileiros falarem, mesmo que a língua seja única, a língua portuguesa, seja diferente conforme a região em que vivem. Sulistas têm sua própria fala, que é diferente dos nortistas, que é diferente dos nordestinos. 

As variações linguísticas tendem a aparecer mais na linguagem falada que na escrita e são importantes para que as pessoas consigam comunicar suas experiências, sentimentos, ideias — enfim, para falarem de sua realidade, que não é exatamente igual à realidade de um habitante de outra região do país. Quem mora próximo da floresta tem um vocabulário relativo à flora e fauna muito mais rico do que quem mora próximo da praia, que, por sua vez, conhece mais termos relacionados ao mar e à pesca. Estes termos geralmente são desconhecidos por quem mora distante do litoral e por aí vai.

Outro fator importante: essas variações podem ser mais que geográficas, mais que regionais. Elas podem ser históricas, de acordo com a evolução dos povos; podem ser estilísticas, de acordo com o modus vivendi dos diferentes nichos sociais; podem ainda ser determinadas por faixa etária, profissão, hábitos, etc. Segundo o professor e gramático Celso Cunha, “nenhuma língua permanece a mesma em todo o seu domínio e, ainda num só local, apresenta um sem-número de diferenciações”. Já o linguista Marcos Bagno, em seu livro A Língua de Eulália, afirma: “Todo mundo fala de um modo que tem explicações na história da língua ou na história de quem fala essa língua. Falar diferente não quer dizer falar errado”. Bola de gude, berlinde, boleba; mandioca, aipim, macaxeira; corujinha, biscoito de polvilho e biscoito Globo — são só maneiras diferentes. Então, Trakinas é biscoito. E é bolacha também.

Sotaque e dialeto: porrrta, porrrteira e porrrtão

Imagine que o Brasil estivesse no meio da rota de uma guerra e que a tendência natural dos cidadãos para que se salvassem fosse a de tentar uma vida nova em outro país, em qualquer outro lugar mais ou menos pacificado em que se pudesse viver com uma família — tradicional brasileira ou não. Sergipanos, alagoanos, manauaras, imagine muitas comunidades se juntando e formando uma nova nação de brasileiros em um outro lugar. Uma torre babel de sotaques, formas, fonéticas e semânticas variadas, não? Pois é. Foi justamente o que aconteceu na colonização, quando os portugueses vieram se estabelecer por aqui. E, juntando-se à língua portuguesa, soma-se ainda as mais de duas mil línguas faladas pelos índios nativos — línguas estas que não tinham nenhum registro por escrito, apenas oral —, principalmente o tupi. A população que veio para o Brasil da África escravizada também deu imensa contribuição para a língua que falamos hoje.

Mas não foram só os índios e os africanos que impuseram modificações ao português trazido de Portugal. Inúmeros imigrantes (franceses, italianos, entre outros) foram chegando, princi­palmente no fim do século passado e início desse século. Esses imigrantes  fixaram-se em diferentes pontos do país, principalmente no Sul e Sudeste. Como vinham de outras culturas, tinham outros costumes, outras comidas e falavam outros idiomas, acabaram por influenciar os moradores das regiões onde se estabele­ceram, que incorporaram alguns pratos de sua culinária, adotaram alguns costumes e incorporaram à fala algumas palavras e até a entonação dos estrangeiros — o famoso sotaque: maneira particular pronunciar determinados fonemas em um idioma ou grupo de palavras. É a variante própria de uma região, classe ou grupo social, etnia, sexo, idade ou indivíduo, em qualquer grupo linguístico, e pode-se caraterizar por alterações de ritmo, entonação, ênfase ou distinção fonêmica. É também o nome usado para a pronúncia imperfeita de um idioma falado por um estrangeiro. A variação do sotaque não depende apenas da região mas também da forma e condição social em que a pessoa vive. Segundo Bagno, “chamamos de ‘sotaque’, normalmente, diferenças de pronúncia, enquanto o termo ‘dialeto’ é mais amplo, pois inclui diferenças de pronúncia, de construções gramaticais e de léxico. Os sotaques são inevitáveis, porque constituem traços identitários das comunidades de fala. Os dialetos, por sua vez, se formam ao longo do tempo, e a história linguística do Brasil ainda é curta para a formação de dialetos, segundo a definição tradicional do termo. Ainda assim, já é possível detectar características morfossintáticas específicas em diferentes regiões”.

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