Maurício Siaines
Sandro Schottz, nascido em 1971 no Córrego Dantas, onde foi criado, é cabo do Corpo de Bombeiros, instituição em que entrou em 1997. Casado, com quatro filhos, formou-se em geografia pela Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia e chegou a lecionar em alguns colégios. Não tinha militância comunitária e em movimentos sociais, até o dia 12 de janeiro de 2011, quando saindo de casa para o serviço no quartel, deu-se conta do estrago causado pelas chuvas na madrugada daquele dia. Em vez de dirigir-se à sede da corporação, ficou por ali mesmo, organizando ações para que estava treinado, de resgate e salvamento de pessoas. Ele explica que, embora haja hierarquia e disciplina no Corpo de Bombeiros, estes são orientados a agir onde haja necessidade, independentemente de receberem ordens para fazê-lo. Assim, Sandro começou quase que a organizar uma nova unidade de bombeiros na localidade.
A partir desse momento, consumou-se uma mudança na vida de Sandro. Dias antes da tragédia, a antiga presidenta da associação de moradores o havia procurado, dizendo sentir-se muito cansada e propondo-lhe candidatar-se à presidência da entidade em novo mandato que se iniciaria. Sandro teve dúvidas a respeito, conversou com a mulher, pensava ainda se aceitaria ou não esse novo modo de participar da vida social, até que se deram os acontecimentos da madrugada de 11 para 12 de janeiro de 2011, que o levaram, de modo nada burocrático, a decidir-se por aceitar a tarefa. A VOZ DA SERRA conversou com Sandro em caminhada pelas ruas do bairro Córrego Dantas na segunda-feira, 11 de julho, na véspera de se completarem os seis meses da tragédia. Na ocasião, ele falou sobre o modo como tem atuado, mostrando o bairro, as soluções possíveis para problemas, os caminhos já percorridos.
A impressão de desolação ainda está presente, com casas soterradas e espaços vazios onde existiram construções. O córrego que dá nome ao bairro, tão pequeno, com tão pouco volume de água, continua a passar pelos mesmos lugares, desafiando a imaginá-lo como o mar em que se transformou naqueles dias de janeiro. Uma pinguela improvisada permite às pessoas atravessarem o riacho, quase no mesmo lugar em que havia uma ponte por onde passavam ônibus. Uma draga a serviço do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) estava parada, como se estivesse abandonada, à beira do córrego, onde alguns encanamentos, na falta de outra possibilidade, despejavam esgoto. Não obstante, os êxitos conseguidos pela ação comunitária liderada por Sandro parecem ter conferido ao agrupamento humano que vive no local um novo tipo de esperança, a esperança em sua própria ação. Mais informações sobre a Associação de Moradores do Bairro Córrego d’Antas: corregodantas.org.
A VOZ DA SERRA – Andando com você aqui por essas ruas do bairro é fácil perceber o quanto você é reconhecido e estimado pelos moradores. Eles se aproximam para falar com você e não estão, nem brigando, nem subservientes, você é tratado como um igual. Como se construiu essa relação?
SANDRO SCHOTTZ – É uma relação de respeito. Eu acho que, depois de momentos como esse que nós vivemos [a partir das chuvas de janeiro] não haveria outra possibilidade senão essa nova postura, tinha que surgir alguma coisa. Se fôssemos olhar com uma visão mais religiosa, ou mística, é como se fosse um processo iniciático. Foi uma carga emocional tão grande, que as pessoas se desprenderam de tudo. Naquele momento, todos estavam no mesmo nível, de igualdade, todos agradeciam por estarem vivos. Acho que isto moveu muitas coisas dentro das pessoas. Inevitavelmente, essas pessoas que estão aqui são diferentes daquelas de antes do dia 12 de janeiro. Não tenho dúvida de que são pessoas diferentes porque foram visões e sentimentos inimagináveis. Ninguém nunca imaginou que pudéssemos passar por isso, passamos, sobrevivemos ... alguns partiram e com estas pessoas é como se tivéssemos um compromisso com elas, de honrar a passagem delas nesse momento tão trágico ... acumulamos, assim, um acervo muito grande de sentimentos e de sensações, uma experiência de vida muito grande, que promove uma mudança, mudança individual que acaba refletindo no coletivo.
AVS – Configura-se aí uma possibilidade de mudança para melhor?
Sandro – Eu acredito, sou muito otimista, trago essa carga de esperança muito grande dentro de mim, que não sei de onde vem, talvez venha da crença no ser humano. O ser humano é bom em essência, ele é fruto do amor, então traz em si esse germe do amor. É preciso, então, que se criem as condições necessárias para que isto brote e frutifique. Acho que estamos vivendo uma oportunidade única.
AVS – Como aconteceu a relação entre a ação desta comunidade e a administração pública?
Sandro – Estamos descobrindo na prática algo que às vezes as pessoas não compreendem muito, que é a questão do poder. Ouvimos sempre que todo poder emana do povo. Mas acho que as pessoas não acreditam nisto, ou não sabem como fazer emanar esse poder do povo. E acabamos descobrindo com nossa prática. Começamos a fazer coisas, a estabelecer uma nova forma de movimento, com uma nova forma de diálogo, construindo parcerias para a ação em vez de ficar só reclamando, esperando que o poder público venha a fazer ... Então, começamos a construir um movimento de interesse público e aí a mídia se volta, há interesse em divulgar isto. E aí, com a visibilidade [do movimento], o chamado poder público, os governos, as concessionárias, as várias esferas de poder começam a abrir seus ouvidos para o que é dito, almejado e solicitado. E nessa disposição de dialogar, começa-se a estabelecer uma relação pró-ativa; começa-se, também a participar, a sugerir e a ver aqueles nossos anseios surgindo na prática, nas ações dentro da comunidade. E aí as pessoas começam a se sentir importantes porque começam a perceber que podem atuar e que têm poder. Começa-se, assim, a vivenciar na prática essa frase que diz que todo poder emana do povo, como está na Constituição. E quando há essa organização, as pessoas começam a interagir e a observar mais a prática do poder público e isto vai criar subsídios também para um juízo na hora de uma eleição. Há uma nova amplitude nesse conceito de cidadania, de participação e de consciência. Mas isto se dá através da organização. Conseguimos coisas aqui com um mínimo de método para se organizar uma reunião, uma coisa simples. Como organizar uma reunião? Precisa-se de uma pauta, temos que atualizar as informações, temos que abrir espaços para as pessoas se colocarem, com tempo definido para cada um se colocar. Depois, vamos encaminhar através de uma diretoria que se encontra toda semana. Da reunião com a comunidade pegamos o material que vamos encaminhar, depois voltamos para a comunidade para mostrar o que andou e o que não andou. Então, a coisa começa a ficar objetiva e a comunidade começa a adquirir confiança nas lideranças e começa a respaldá-las. Então a coisa começa a ganhar consistência como movimento comunitário. Isso, através de ferramentas sociais. As comunidades precisam disso. Aqui, as pessoas estão começando a entender como isto funciona.
Não sei se em todos os lugares existem pessoas que tenham o mínimo domínio desse tipo de aparato social. É preciso, então formarem-se pessoas para essa atuação. É preciso se apoiar nas lideranças em potencial e investir nelas, com métodos, técnicas, ferramentas, para que elas possam organizar suas comunidades. Infelizmente, o que temos visto, em vez de investimento na liderança, é a cooptação. Isto é histórico, não é privilégio só de Friburgo.
AVS – Explique o que é essa cooptação. Por que isto é um mal?
Sandro – Isto não deveria ser um mal porque todos estão abertos a convites para participar de uma eleição, para fazer parte de uma gestão administrativa. As administrações, assim como os partidos políticos, têm suas estratégias e é importante que identifiquem pessoas para representá-los no Legislativo ou no Executivo. Mas é preciso que se considerem as necessidades locais, das comunidades. Às vezes, retira-se uma liderança importante de uma comunidade para levá-la para o Legislativo ou para o Executivo e aquela comunidade fica desprovida dessa liderança. E essa liderança, essa pessoa, também acaba sendo absorvida por um sistema desorganizado, que é o nosso sistema político. Sou muito crítico em relação a nosso sistema político, acho que ele acaba, muitas vezes, corrompendo valores, corrompendo capacidades que as pessoas têm em função de interesses de poder, interesses econômicos ... infelizmente, isto acontece. Corre-se então, também, este risco de afastar-se uma liderança da base e ela acabar sendo absorvida por um sistema que não está ainda bem organizado, que já traz mazelas do passado. Neste momento, acho que os partidos políticos deveriam ter muita sensibilidade na hora de montar suas chapas, seu grupo que vai concorrer, de maneira a preservar os movimentos que possam estar surgindo nas comunidades. Isto não quer dizer que lideranças comunitárias não devam assumir cargos no Legislativo ou no Executivo. Acho até necessário haver essa renovação, mas acho que isto deve ser muito bem pensado e bem organizado. Acho até que o ingresso dessas pessoas nesses poderes tem que ser muito bem preparado para não se alimentar esse sistema só de brigas políticas partidárias, de manutenção de poder. Começa-se, então, a entrar em um âmbito maior. Fala-se em reforma política mas esta reforma tem que ser construída por quem? Por eles que estão lá fazendo a manutenção desse modelo, ou pela base? Então, começamos a entrar em uma discussão um pouco maior. Acho que deve haver uma reforma política, mas a partir da base. Aí, sim, vamos preparar um campo de atuação mais frutífero, mais proveitoso. Do modo que as coisas estão, é lamentável, às vezes, que uma liderança seja retirada de sua base para ocupar um cargo.
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