LetraLivre - 13 de dezembro

Por Sérgio Bernardo
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
por Jornal A Voz da Serra

Histórias que eu ouço

Enézia Ferreira não é um nome que, ouvido, a gente pensa ser familiar. Não tem a ver com nenhum tipo de arte, tampouco com a vida política em qualquer esfera, nem com a ciência ou o esporte. É um nome que apenas os mais antigos moradores do bairro Braunes, aqui em Friburgo, lembrarão como o da vizinha do número 62 da Rua Helena Coutinho. Esta senhora encantou faz alguns anos. Antes, já estava residindo havia bom tempo em São João da Barra, Norte fluminense, lá na desembocadura do Paraíba. Nascida em São Pedro da Serra, creio que pela década de dez, foi enfermeira da Clínica Santa Lúcia, quando ainda existia a unidade das Braunes, e neste emprego se aposentou. Por que me lembro dela aqui, hoje? Dona Enézia foi uma grande contadora de causos, das melhores que já vi (ou ouvi). Anciã da tribo, reunia nosso pequeno bando de curumins na varanda de casa e nos fazia viajar nas histórias de lobisomens e companhia limitada que haviam habitado seu universo de menina. Não só, porém, assombrações para nos fazer perder o sono. Contava de um tempo em que, se existiam dificuldades de todo tipo, havia também mais proximidade nas relações humanas, mais encontros para prosear, mais tempo para tudo. Tanto tempo, que, naqueles longes, a velha expressão matar o tempo ainda fazia sentido...

Contar causos, arte vinda lá do início do mundo, quando os povos primitivos aprenderam a falar, só perde em diversão, acredito, para escutar causos. É do ponto de vista privilegiado do ouvinte que bato um papo breve nestas linhas sobre Contos e Causos – Histórias que eu conto, livro de Álvaro Ottoni, recém-lançado na cidade. A feia palavra compilação, quase saída de cena, me servirá para definir do que se trata o livro: uma compilação dos textos, alguns autorais, utilizados nos espetáculos de contação de histórias que Álvaro realiza em vários espaços de Friburgo e em terras como o Rio de Janeiro, Cataguases e Porto Alegre. Contos e causos direcionados aos jovens e aos adultos, que se acriançam na platéia escutando-os do jeito amineirado – tranquilo e envolvente – do contador os contar, embora seja ele um carioca de todo o ovo, não só da gema.

Não pretendo resenhar o livro, ofício que alguém da área de Letras saberá exercer melhor. O que faço é dividir com os que aqui chegarem um pouco da emoção sentida durante a audição de muitos destes textos, e agora na leitura dos mesmos e de outros, acrescentados na versão impressa do Contos e Causos. Histórias como O jabuti e a anta – fábula a la Esopo que, ao lado de fazer rir, faz pensar sobre o nosso papel como andantes nesses caminhos que servem à passagem de todos; ou O dia em que estraguei um quadro de Picasso – mostrando o quanto a força de uma amizade pode tornar invisíveis pequenos estragos em nossa alma; ou O peixe que não sabia nadar – uma das mais bonitas formas de se abordar a questão da autoconfiança, desconhecida ou perdida, já vista por mim num texto literário; ou ainda O menino e o mar, trazida do escritor uruguaio Eduardo Galeano, que trata da surpresa, da ingenuidade, do encantamento, coisas que os duros tempos atuais vão colocando na seção de achados e perdidos do mundo; e muitas, tantas outras nos aproximando daquele ser que em nós, segundo Mario Quintana, é só “um menino que envelheceu, um dia, de repente”.

Mesmo envelhecidos – condição que nada tem a ver com a idade cronológica –, graves, sérios, ocupadíssimos com nossas questões de vida ou morte, podemos dar de comer e beber a essa criança que, no fundo, não morre; e um modo bom de fazer isso é assistir ou ler Álvaro Ottoni historiando por aí os contos e causos que são sua arte e compromisso como escritor e pessoa.

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