LetraLivre

Sérgio Bernardo
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
por Jornal A Voz da Serra

Movimento

de espelhos

1

O dia

compõe em mosaicos

meus instantes

Amanheço

fragmentos

e durmo

ilusão de conjunto

na mais total

incompletude

Como quem se mira

em espelhos quebrados

restauro

utópicos fractais

de mim

ainda encontro a forma

de esculpir-me

um corpo indivisível

2

Na minha mesa posta

um bule com o choro de

[ontem

servido amargo

Entre os jornais do dia

o roteiro em detalhes

do que podia ter sido

Em vez da geléia de morango

o suor das tarefas

num pote de cerâmica

A faca corta o pão

como se amputasse

a língua do ódio

No balcão da copa

o relógio do microondas

cobra meu tempo

Todo dia às 7

desjejuo em silêncio

e a família ignora

a fome de dentro

3

Desço escadas

tateando teias

que eu ontem teci

junto às aranhas

Procuro os porões

em que apodrecem

palavras puídas

Entre trastes de avós

coleciono em caixas

remorsos antigos

Não existem janelas

nestes aposentos

e a única lâmpada

ainda nova queimou

As paredes gastas

aceitam o mofo

do modo que aceito

o oco dos dias

Nos meus subterrâneos

por que essa mania

de reter o já findo?

4

Fabrico holofotes

com minhas palavras

Cada gesto meu

produz um incêndio

Semeio lâmpadas na casa

no quintal crio vaga-lumes

Sou eu que toda noite

faço o parto da lua

Nos olhos e sorrisos

idealizo abajures

Adormeço meu frio

no colo do fogo

Com dedos de sol

amanheço a cozinha

Prendo estrelas em fios

e as vendo nas feiras

A claridade é meu ofício

5

Que sei eu das sombras

petrificadas em chinês

nas paredes da infância

Que sei eu dos muros

separando mundos

nos quintais da pátria

Nas mesmas palavras

dos mesmos livros

que sei eu de mim

Que sei eu

ignorante em didática

das aulas sonegadas

Eu que não sei nada

sendo parte de tudo

que sei eu do outro

Que sei eu, me diga

das manhãs e tardes

tecidas em silêncio

Órfão das noites

paginando lendas

que sei eu das luas

Na ciranda do tempo

que sei eu da face

que move os espelhos

Poema premiado no 43º Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup), no Paraná

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