Com a boa nova de que a Mangueira chegou – há anos ela chega –, o primeiro a aparecer é mestre Jamelão, talvez por ter ido na véspera. Voz forte e o jeito de sempre, sisudo, o mal-humorado mais simpático da música popular brasileira. “Puxador tem o de corda, o de carro... eu não sou puxador. Eu sou cantor”. Era mesmo, dos melhores, daí todo o direito de exigir respeito para um intérprete de samba. A partir da reivindicação do veterano, todos os outros passaram a ser assim chamados. Impor moral não é para qualquer um. Tem que se conquistar a prerrogativa. Coisa que só alguém que trilhou a estrada com dose grande de talento e maior de ousadia pode afirmar que conseguiu. Está vendo aquela fita em duas cores, verde e rosa? Ela é para você cortar, Jamelão, e inaugurar sua memória entre os grandes da MPB.
Vêm outros, também. Porque quando se chama um, não há como o camarada vir sozinho. Os gostos musicais de qualquer aficionado são muitos. E sabe como é, uma lembrança puxa outra...
Como hoje é dia de estar sentimental até o último fio de cabelo, vem a diva do fado, impecável num vestido preto longo e com a juventude preservada – não que a beleza no dia de seu adeus a houvesse abandonado, longe disso... Amália Rodrigues chega cantarolando baixo a melodia inesquecível de Lágrima, cria sua em parceria com Carlos Gonçalves. Bom amar assim, Amália, suspirando que “por uma lágrima tua, que alegria, me deixaria matar”. Em tempos de amores descartáveis, em que Dias do Fico em geral duram mesmo um único dia – não raro algumas horas –, entregar-se a ponto de dar a vida por uma gota dos olhos de quem se ama é bonito demais. Isso é que é amor. Quem apenas fica não vai entender. Nem se te ouvir a cantar, Amália. Capaz que diga: “Isso já era!”. Mas não aqui, nem hoje.
Vem, de repente, Maysa. Talvez a porta da melancolia aberta traga toda uma legião de cantores ditos de fossa no século passado... “E daí, e daí?”, a linda de olhos verdes indaga. “Daí, por mais cruel perseguição, eu continuo a te adorar”, respondem os outros fantasmas em coro. Pronto, já virou uma festa. Reconheceram-se da mesma turma. Agora é só curtição o que seria uma visita íntima de uns poucos desses que se foram para o outro mundo. Culpa do Drummond, que também se faz presente, embora não seja um cantor. Ou melhor, um cantor ele até é, no sentido amplo do termo. Apenas canta sem melodia. E o que são as letras de música se não poesia pura? Pois não foi o mineiro velho que disse que uma lua e um conhaque “botam a gente comovido como o diabo”? Palavra de poeta é lei. A gente nem discute; acredita. Mesmo a lua sendo um sol tímido de quase inverno e inexistindo o conhaque, a gente viaja no poema e a comoção derruba. É como aquele outro verso, esse do Fernando Pessoa, entregando que “o poeta é um fingidor”. Não é ele que vem ali, de sobretudo e chapéu?
Mas chega de conversa, porque a farra me chama. Visita de fantasmas é curta e, quando se dá pela coisa, é hora de trabalhar e o encontro acabou.
Falha nossa: Na coluna de sábado passado, 14, o e-mail para contatar a livreira Graça Simões saiu incorreto. Para falar com ela e adquirir livros do seu vasto acervo o endereço é: livrariasimoes@frionline.com.br
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