Está bom, está certo: é preciso suavizar as palavras nesse caderno de jornal que desde a pia batismal anuncia sua leveza. Confesso que a tentativa sempre é neste sentido e, se acaso perco o foco, a culpa não é minha, tampouco é do Fidel, apesar do novo título cinematográfico de Julie Gravas.
Ainda não aprendi com os budas ditosos daquela casa que ainda é sucesso nos palcos a ser impassível diante das barbaridades. Hoje, o acúmulo de informações que chegam surfando as ondas da comunicação nos força a uma ressaca involuntária, transbordando até aquela que não é nossa praia com uma quantidade assustadora de detritos. E tudo lixo tóxico, que contamina e, de um modo inevitável, dá a impressão de viciar. Como um tabagista que se rebela contra o seu cigarro, varro a sujeira que invadiu o título da última crônica para debaixo do tapete do próximo parágrafo.
O ano da vez é 1968 e todos vão dando seu depoimento a respeito dos 40 anos que nos separam. Impossibilitado de uma memória a respeito, pois neste marco no calendário do mundo eu ainda não sabia quem era, salto vinte anos antes dele e lembro com uma memória recente os 60 anos do estado de Israel. Há pouco os israelenses comemoraram o sexagésimo aniversário de seu país, que soma nem sei quantos mil anos de história, ainda e sempre temerosos de um ataque terrorista, prevendo no azul de seu céu uma chuva de bombas – que em meio à festa veio em poucas gotas, mas, como sempre, veio.
Minha memória não se localiza na pátria da estrela de Davi, a que nunca fui; ela vem da Bahia, pouco mais de um ano atrás, quando conheci o Dan, filho de Jerusalém que estuda português e estava, como eu, de férias na Salvador de Todos os Santos. A princípio pensei que fosse argentino, por sua familiaridade com o grupo de portenhos de dois quartos adiante. Antevi-o a assobiar o Caminito sem sequer supor do Hava Nagila de suas cordas vocais. É que ele já falava espanhol quando se interessou pelo idioma do velho Portugal em sua universidade. Aproximamo-nos pela apresentação da morena de Feira de Santana que nos levou ao Rio Vermelho para provar o melhor acarajé do mundo. E depois, na companhia um do outro, nos aventuramos por ônibus, balsa, topic e escuna pelos desconhecidos caminhos que levam a Morro de São Paulo, paraíso insular aonde se chega a partir de Valença. Lá em Morro o soube familiarizado com o violão, ouvi-o cantando bela música judaica contemporânea e formamos uma pequena ONU convivendo ambos com o espanhol (catalão) de Barcelona, o paulistano e a moça argentina. Nada ali, durante aquela festa de culturas, fazia supor haver em redor um planeta em convulsão, com raiz nas mesmas diferenças culturais.
Daquele março para cá, e a cada bomba caída ou ameaça pairando sobre a milenar capital de judeus e árabes de Israel, o amigo, o violão, a música judaica com sua melodia bossa-nova (eles são loucos por nossa cinqüentona Bossa Nova...) fazem uma viagem de regresso até mim, em companhia do desejo de que tudo esteja bem a sua volta, com sua mãe filha de imigrantes, seu pai iraquiano e sua irmã que imagino de belos olhos negros.
Como nota à crônica cabe dizer que, no cais da Gamboa, em Morro de São Paulo, ouvi o Dan relatar com solidária postura a situação de vida deplorável dos palestinos, imposta pelo governo de seu país, que exemplifico com o difícil acesso à educação, ao trabalho e ao bem vital que é a água. Pessoas com pensamento igual ao dele há muitas por lá, conscientes da feiúra destrutiva de um artefato bélico e da beleza necessária da palavra shalom.
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