A boa vontade, surgida ao acaso, faz carícias na gente, igual àquelas que percebo na língua da minha cadela ao lamber seus quatro filhotes como quem toca em objetos de fina porcelana. Por telefone, pediram-me que pedisse ao vizinho um pouco de erva-de-passarinho, a ser ingrediente de um xarope. Com saião, guaco, mel, beterraba, há de favorecer a cura da pneumonia que há 15 dias maltrata uma tia. Fiz o pedido. E o senhor da casa ao lado, prestimoso e cortês, me chama do muro para entregar a sacola com a erva. “Diga a ela que não é de árvore com espinho, não. É da jabuticabeira. E se precisar de mais, é só pedir”, avisa, com a satisfação de ajudar impressa no rosto.
Lembro-me de antigamente, do que ouvia minha avó contar sobre o quase parentesco entre vizinhos. Ela morava em uma vila na Rua Adolfo Mota, na Tijuca de outros tempos – quando no bairro a polícia quase não trabalhava e sequer sonhava em atirar nos carros primeiro e só depois saber quem são os ocupantes... Vizinhança era parte da família e estava aí para o que desse e viesse. As cadeiras nas portas das casas iam abrindo espaço para uma intimidade cada vez maior, crescida nas conversas à noite. Época sem novelas para exterminar o colóquio amigo entre pessoas. E sem o temor contemporâneo de um assalto à mão armada, caso as portas não se fechem com o máximo possível de trancas Papaiz.
Há palavras que não deveriam nunca cair em desuso, nem no idioma, nem na vida. Cortesia. Gentileza. Generosidade. Amabilidade. Enumero apenas estas quatro que pouco tenho ouvido nas vozes do dia-a-dia ou lido entre as milhares de palavras que compõem os jornais a cada edição. Deveriam ser leis. A Lei da Generosidade com certeza faria o país prescindir de outras. O seu exercício cotidiano evitaria discussões, xingamentos, pensamentos-forma de ódio que vão gerando mágoas e rancores monstruosos, e até agressões físicas e assassinatos. Por isso foi tão bom e importante percebê-la na atitude simples de um favor prestado.
Fossem amáveis e generosos, os policiais chineses da província uigur não teriam espancado os dois jornalistas japoneses num quarto de hotel, enevoando o clima de paz às vésperas das Olimpíadas – sequer os terroristas teriam detonado aquela bomba que vitimou tantos policiais. E com certeza todos respeitam outras leis, criadas e sancionadas pelo Estado. Mas a da amabilidade não existe de modo oficial. É da competência de cada um, regulamentada e posta em prática individualmente. Nascida de uma junção entre alma e cérebro para reger pensamentos, atitudes e verbalizações.
Quando encontramos a gentileza legalizada por um indivíduo, sentimos renovar-se o próprio ar, irrespirável hoje entre tantos explosivos – os do Iraque e mesmo aqueles, caseiros, que feriram jogadores de futebol num treino – e tantos tiroteios, nas ruas e morros do Brasil. Uma prova palpável dessa lei está ali dentro daquela sacola de supermercado, no emaranhado de erva-de-passarinho que até o fim do dia vai virar remédio.
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