Nasci em ti, Cidade Maravilhosa, de frente pra teu mar, num ponto em que se avista o Cara de Cão. Visão exata dos primeiros lusitanos d’armas em punho que te pisaram. E, caso os índios que nem sabiam da Índia se recusassem a aceitar os reles espelhinhos e demais quinquilharias que traziam, aqueles homens cor de Jaci, a Lua, estariam prontos a usar espadas e lanças impiedosamente. Conta a História que em algum momento as usaram. E é certo também que muitos dos pálidos Monstros Nascidos das Entranhas do Mar sem Fim acabaram nos buchos cor de cobre dos aborígines de Santa Cruz. Um tal Sardinha foi um deles, séculos antes das extintas indústrias 88 se firmarem do outro lado da baía, na velha Nictheroy, a fabricar as homônimas do frade enlatadas.
Nasci em ti, por providência não de um pai do céu, mas do biológico mesmo, que assim quis para garantir um parto seguro, já que a mulher, minha mãe, não era dada a gravidezes normais. Ainda assim, com tamanha precaução, quase fui ao beleléu, pequena batata-roxa coberta de rugas e sangue a coagular, porque um obstreta incompetente me queria porque me queria vindo ao mundo por parto normal, desconsiderando o materno estreitamento de bacia. E se escapei, foi por milagre, não pela perícia de um cara que deve ter dormido aulas e aulas do seu curso de medicina.
Nasci em ti, cidade do Rio de Janeiro, antigo estado da Guanabara, há perto de quarenta e dois outubros, e em ti sempre passei as férias escolares no tempo do primário e ginasial. Quantos verões me deste para me empanturrar de sorvetes e sucos – lembro os que a tia-avó Salomé de meus primos nos dava em lanchonetes da Glória e do Catete, de frutas da sua Manaus, como graviola e cajá, entre outras, exóticas, de cujos nomes me esqueci – e me esbaldar nas idas ao jardim zoológico e ao museu da Quinta da Boa Vista. E a primeira vez que fui à Barra, então, à casa da madrinha? Ainda não se viam os tantos arranha-céus que estragam a paisagem da orla, nem aqueles shoppings que transformam o bairro numa caricatura nova-iorquina. A Barra, o Recreio de trinta anos atrás ficavam longe, longe, quase como ir a uma outra cidade, quase como hoje ir de Friburgo a Rio das Ostras – claro que guardadas as proporções das distâncias infantis: naquele tempo os dias entre o Natal e o Ano-Novo duravam uma eternidade...
Nasci em ti, mais linda ex-capital de meu país, mas hoje, quando vou ao teu encontro, perdeu-se o gosto de antes, parecido com o de chocolate derretendo na língua. Há um travo amargo inundando a boca quando desço do ônibus na Novo Rio, por não saber em que esquina tua está morando o perigo, em que rua estão arrastando um menino preso pela roupa à porta de um carro roubado, em que porta de boate estão tirando a juventude dos filhos de tua gente trabalhadora, em que comunidade de teus morros as balas perdidas acham alvos. Embora saiba em que avenida – a Conde de Bonfim, onde morei no apartamento de meus tios à época da faculdade, tantas e tantas vezes cruzada, vejo agora, com uma imprópria inocência – uma polícia despreparada criva de balas o carro de uma mãe e dois filhos, como se houvesse em ti uma guerra diária. Será que há, não declarada? Será que fomos todos convocados, sem saber?
Ai de ti, Rio. Pego emprestado o Ai de ti, Copacabana de crônica e livro de Rubem Braga, escritor dos que mais te amaram e descreveram tuas belezas, para lamentar tua atual condição de cidade sem lei, violenta e violentada – apesar dos chopes, das praias, do Maracanã, do Sambódromo, dos artistas. E do teu povo de bem, que de tudo fará pra que teu nome não mude da primeira pessoa do singular do verbo rir para a do seu tristíssimo contrário: ninguém quer mais por ti chorar, como hoje choro.
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