Todas as ruas
Soletrar as ruas pedra por pedra. A rua física, exposta ao tempo, do chão duro e o ressalto do meio-fio à calçada, andada por toda gente, habitada por muitos, curtida pelos que são do relento. E a outra rua, a que não se vê, morada dos espíritos que dela são o povo e os donos. Isso o que moveu Cristina da Costa Pereira na feitura deste POVOS DE RUA.
Em todas essas ruas sente-se a presença de todas as Cristinas. A professora ensinando de maneira não-didática, sem imposição de conceitos ou supostas verdades. A poeta que é puro sentimento ao explicitar a poesia encontrada em todas as vidas nas quais entrou com sutileza. A escritora que sabe contar uma história, através de sua escrita fácil, porque simples e direta, sem o artificialismo barato dos que jogam incompreensíveis xadrezes literários. A umbandista praticante, com anos e anos de idas a terreiros, consultas a entidades, trocas de saravás. E a rueira, do convívio intenso e pacífico com os semelhantes. Todas essas mulheres que nela vivem percorrem estas páginas e trazem pela mão individualidades com muito a dizer sobre a beleza e também a feiura das ruas.
Subir e cruzar com Cristina as ladeiras e vielas de Salvador para ter contato com as baianas, capoeiras, mendigos, artistas e boêmios, além dos capitães da areia de hoje (meninos e meninas das ruas do Pelourinho), é ver além dos olhos viciados dos turistas, drogados por aquelas fachadas antigas e costumes diferentes. Bem mais do que apenas passar pelas pessoas da terra como se fossem parte da paisagem: sentar ao lado delas e penetrar, com o seu consentimento e até onde permitem ir, os lugares íntimos em que estão guardadas suas vivências. Umas bastante sofridas, outras com o final feliz de quem deu a volta por cima. Visitas a tantas intimidades que a autora faz com respeito e, o que é emblemático, sem qualquer sombra de juízo (conforme proposta declarada no Bate-papo com o leitor e percebida ao longo da leitura).
Da mesma forma e com igual postura, ela sai às ruas do Rio de Janeiro, vai à Vila Mimosa, a Santa Teresa e à Lapa e traz na volta personagens que compõem a realidade desses espaços que ficam extramuros de casas, edifícios, shoppings e condomínios de luxo, com sua parafernália eletrônica a serviço da criação de um mundo à parte, onde as ruas não têm alma. Porque na rua comum a todos existe o medo do outro, reside o pavor do desconhecido, teme-se o contato olho no olho e assim vai sendo construído um mundo pior, repleto de olhos artificiais (as câmeras de segurança) nas esquinas onde ontem se tirava o chapéu e se dava bom dia.
A Parte II do livro tem como finalidade primeira deixar clara a missão das entidades que na umbanda são conhecidas como Povo de Rua: trabalhar no plano físico junto aos que precisam, para cada vez mais evoluir na senda espiritual. E a autora realiza seu intuito dando a conhecimento geral as respostas destas entidades às entrevistas (ainda utilizando-se do método com o qual recolheu os depoimentos das pessoas ditas deste mundo) feitas em tendas, terreiros, centros e casas de umbanda do Rio de Janeiro e Salvador (é interessante e, ao mesmo tempo, sinalizadora de um quase cisma religioso sua longa procura pelos umbandistas da capital baiana). Só mesmo conferindo o que dizem as entidades, e também os cavalos que lhes emprestam os corpos, para compreender quem de fato elas são, o que pretendem e o que praticam, em termos de caridade, numa gira de exu.
Por fim, mas não encerrando (porque as ruas terão, infinitamente, outras coisas a contar), Cristina abre a roda e permite a si mesma e a alguns poetas, como num evento de praça, rasgar o verbo em seus contundentes e belos poemas de rua.
E fica o leitor, após a leitura dessa obra precursora e única, menos preso em invólucros e mais humanizado: no melhor sentido da palavra e por convicção, um rueiro.
Nota: Texto de apresentação da 2ª edição do livro ‘Povos de Rua’, de Cristina da Costa Pereira.
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