Letra Livre - 28 de março

Por Sérgio Bernardo
sexta-feira, 27 de março de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Autobusca a partir de madeira e papel

O universo se basta. Autocriador, cíclico, renovável. Dispensa, portanto, este minúsculo planeta azul perdido na sua poeira.

E o minúsculo corpo celeste também se basta. Sem o pequeno ser pensante que o habita, passaria eras bastando-se no ir-e-vir do dia e da noite, na ciranda das estações e na vida e morte das plantas e dos outros animais.

O homem, porém, não se basta. Estar no universo e no planeta, num ciclo de nascimento e morte – respirando, comendo, procriando-se – não lhe é suficiente. Seu pensamento quer mais, a consciência sabe que há mais, a alma precisa de mais.

Dentro do mais está também a arte. Toda forma dela, em que o homem procura exprimir-se na sua totalidade. Onde se questiona, se procura e (nem sempre) se encontra. Escreve para ler a si mesmo, representa para analisar-se, pinta para se olhar e ver... É o animal a que não basta sentir e reagir ao sentimento; tem necessidade de materializar o que apenas sente em terreno impalpável.

Entre tantos homens que se dão à arte para a realização do mais está o que se vale das formas, cores, relevos, sombras-luzes. E entre esses há o Fabio Herdy, reunindo em seu acervo muito do que realiza, basicamente como gravurista, na sua íntima percepção do que é ser humano.

Por não ser a poesia exclusiva dos poetas das palavras – a poesia é o mundo – na autobusca de Fabio a poeticidade explode. Nas duas cores de Retirantes, obra de 2004, aquele vermelho sob os pés de mãe e filho – as sombras de quem são – fala talvez do sangue dado à terra, ou por sair do próprio chão, ou pelo sacrifício mesmo de andar e andar, ou pela dor do não-encontro ao fim do caminho.

Enquanto isso, no pássaro em seu galho, também de 2004, a leitura pode ser semelhante à de um haicai: uma fotografia a petrificar o instante observado de uma janela ou varanda, e quase sempre desprezado pelo comum olhar negligente.

Mão de Deus, sem data, pode ser que poetize a criação remetendo ao maior que resvala no incognoscível, apenas imaginável, em que um halo luminoso busca traduzir princípio e, em vez de término, continuidade na direção do mais alto – sentido para o qual é possível que estejamos no mundo.

E Babi no Céu com Diamante, Pai, Sítio, Cavalheiro da Meia-Noite, D’aprés Van Gogh e as muitas gravuras sem título? Poderia apresentar, de todas, uma suposição com raiz na linguagem poética, de onde é extraída, com flagrante certeza, a arte até hoje produzida. Mas seriam simples suposições, nascidas de um olhar pessoal. Cada um, com seu foco, é convidado a fazer uma interpretação do exposto. Porque ao artista não interessa oferecer imagens que não forcem o observador a uma leitura individual. Seu interesse reside, primeiro, na autoexpressão – ver a si mesmo, buscar-se, dar forma aos próprios sentires, pensares e sonhares – e, depois, na instigação do outro para um mergulho neste universo particular que, incabível na alma, explodiu nas peças de madeira escavadas e nas folhas de papel prensadas sobre elas.

Para os olhos [instrumentos de ver] e a alma [máquina de sentir] de cada um, a xilogravura de Fabio Herdy.

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