Maurício Siaines
Luiz Fernando Folly trabalha no Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural da Secretaria de Cultura de Nova Friburgo decifrando signos representativos da vida social da cidade. Falou de seu trabalho em entrevista dada a AVOZ DA SERRA na última quinta-feira, 16 de agosto, ocasião em que discutiu lendas e fantasias sobre a história da cidade, além de buscar definir o que é patrimônio, tanto material, quanto imaterial, e as maneiras de se tratar dele. Abaixo, trechos da entrevista.
A VOZ DA SERRA – Fale um pouco de sua carreira e de sua atividade na Secretaria de Cultura.
Luiz Fernado Folly – Sou friburguense, filho de friburguenses, família Folly, que é da cidade mesmo, e morei muito tempo no Rio de Janeiro. Depois, fui morar em Natal, no Rio Grande do Norte. Trabalhei boa parte do tempo—mais recentemente, em Natal—em construção civil, projetos ligados à recuperação urbana de áreas históricas, mas tudo muito mais ligado à construção do que propriamente ao trabalho mais intelectual que está sendo feito aqui, na Secretaria [Municipal de Cultura de Nova Friburgo]. Ao final de 2008, começo de 2009, o prefeito eleito Heródoto [Bento de Mello] fez um convite, perguntou se eu não queria retornar para trabalhar com alguma coisa relacionada a projetos de memória, projetos de cultura ligados à memória, que era a área em que eu tinha interesse. Pensei muito e aceitei vir para cá, também porque queria fazer doutorado—então, aproveitei também a volta para entrar no doutorado em planejamento urbano da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro].
AVS – E sua formação inicial qual é?
LF Folly – Tenho duas graduações, em arquitetura e em paisagismo, em universidades diferentes, com especialização em história, mestrado em urbanismo, mas urbanismo ligado à história—minha dissertação é sobre a Praça Getúlio Vargas [no centro de Nova Friburgo], projeto do [Auguste François Marie] Glaziou [1833-1906], estudando urbanismo com uma vertente histórica. E agora, no doutorado em planejamento urbano, estudo essas intervenções em que se cria um planejamento urbano respeitando o patrimônio histórico vinculado a esse trabalho. Por mais que a carreira aponte para um lado, essa questão do patrimônio está vinculada à formação.
AVS – Então, por favor, defina patrimônio.
LF Folly – É uma questão complexa. Para simplificar, diz-se que patrimônio é tudo o que pertence a um coletivo. Divide-se em duas áreas, o patrimônio material e o imaterial. O material é a obra construída pelo homem—arquitetura, obras de arte, quadros, esculturas, vestígios concretos, materiais, da passagem do homem pela terra—e o imaterial são as lembranças, o discurso oral que ainda se pode ter de uma cidadão que viveu em outro período e guardar essa memória, com o áudio e o vídeo dele, as tradições ... várias tradições. Aqui em Friburgo temos parteiras ainda, há uma questão africana muito forte na cidade, em alguns lugares; os cultos, as próprias religiões que temos. Todos esses costumes e hábitos colocam-se no âmbito imaterial. E há um primeiro ato, que é o de inventariar...
AVS – Inventariar, visando a um futuro tombamento?
LF Folly – O inventário já é uma proteção. Aquele ato de colocar que existe aquele objeto já está protegendo. Às vezes, um bem não tem um valor para tombamento, mas se é feito esse inventário, por menor que seja o motivo, esse inventário vira uma memória também desse bem, mesmo que ele não exista mais, como um quadro que tenha sido roubado, por exemplo.
O patrimônio está ligado à identidade [das pessoas] do local. Um dos fatores para se valorizar um objeto, um lugar, um costume, é exatamente sua ligação com a identidade. O patrimônio faz reviver ou rememorar o conceito de nação, de identidade do povo ligado ao lugar.
AVS – Nesses objetos construídos virtual ou materialmente há uma enorme carga afetiva emprestada a eles pela comunidade...
LF Folly – Com certeza, é a identidade ligada ao patrimônio em si, a pessoa vê sua história contada ali. E Friburgo tem coisa interessantíssimas, embora hoje se viva um momento de empobrecimento muito grande nas escolas.
Agora, por exemplo, estamos restaurando a fachada da casa do barão [de Nova Fiburgo], Antônio Clemente Pinto, onde funciona a Oficina-Escola de Artes e tem coisas ali preciosíssimas, referências de imagens de coisas de Friburgo que ninguém conhece; entram e saem pessoas e ninguém conhece. Há fechaduras, detalhes construtivos da casa, que passam despercebidos. E parte do que Friburgo foi e poderia ser está ali dentro. A questão está nesse elo, de como tornar mais próximo da população esse patrimônio.
AVS – Sua formação em arquitetura foi fundamental para que você pudesse entender esses detalhes que revelam aspectos da história, não é?
LF Folly – A mentalidade de um olhar diferente, a formação de um ser humano observador, está na fase inicial da vida da criança. Na família e na escola se forma o olhar. A formação secundária aprimora. No meu caso, consegui aprimorar, burilar um pouco mais [essa característica], mas despertar o olhar é muito importante.
AVS – Você acredita, então, que no seu caso, se você fosse estudar filosofia, em vez de arquitetura, também prestaria atenção nesses detalhes reveladores?
LF Folly – Sim, eu acho que esse nascedouro da criança influencia muito mais. Vamos falar da Oficina-Escola, que tem muitas crianças: elas estão encantadas vendo o trabalho de restauração de algumas coisas. O universo da história em que ela vive está ali, vivo, materializado ali na frente dela.
AVS – Falando de patrimônio imaterial, morreu ontem, quarta-feira, 15 de agosto, com quase 88 anos, o Altamiro Carrilho, figura importante da música, representativo da ligação entre as bandas de música e o choro, tipo de música nascido dessa relação entre o popular brasileiro e o europeu, que encontrou nas bandas de música, materialmente organizadas, um ambiente que lhe permitiu desenvolver-se. O choro, ou chorinho, é um patrimônio imaterial. Como você vê essa relação entre o material e o imaterial?
LF Folly – Decidimos iniciar pelo patrimônio material por ele ser mais fácil de se trabalhar não tendo equipes. Para trabalhar o patrimônio imaterial, é preciso uma equipe mais multidisciplinar.
AVS – E aqui na Secretaria de Cultura, só você e a Lilian Barreto estão trabalhando agora?
LF Folly – Só. E houve casos em que fomos chamados para registrar patrimônios imateriais. A Euterpe Friburguense foi um desse casos, a cachaça Nega Fulô foi outro. Foram duas entidades que nos procuraram para fazer um inventário, um estudo para se propor uma proteção. É complexo: pessoas transitam de uma área de influência para outra [como os músicos do chorinho e as bandas de música], criando um modo [de fazer alguma coisa] que vai se repetir no tempo e essa repetição vai gerar algo que se pode considerar como um patrimônio imaterial, representativo do local; algo que tenha cumprido uma missão na sociedade e vai repercutir no tempo [afora]. Quando se fala em música, tem-se ainda vestígios materiais mais sólidos e pode-se conhecer até mais, vendo uma partitura, uma músico analisando aquele partitura. Pode-se ir, assim, além do que aquele documento está dizendo em um primeiro momento. Acredito que vá demorar ainda muitos anos para Friburgo ter seu patrimônio imaterial mais bem-resolvido por causa dessa questão multidisciplinar. Atrapalha não se ter material humano para se fazer isso, embora seja de extrema importância. A pesquisa do patrimônio imaterial deveria até ser feita antes, mas, pela sua complexidade, em quase todos os municípios—como a vizinha Duas Barras, que nos chamou para ir lá ajudar a fazer um inventário—é muito mais simples começar pelo patrimônio material.
AVS – E o patrimônio material é um indicador seguro.
LF Folly – Com certeza. Está ali, tem-se como mensurar cada coisa, E há mais vestígios ligados a ele. Para o imaterial, uma pesquisa oral tem que ser feita, é preciso gravar, filmar, digitalizar, examinar documentação, comparar fontes, avaliar o quanto aquele discurso oral tem de ilustrativo, há uma complexidade ... fico triste por Friburgo não ter condições de executar [esse estudo].
AVS – Uma outra questão: as sociedades, dependendo do momento que estejam vivendo, fazem escolhas ...
LF Folly – ... de apagar, rememorar ou não um fato.
AVS – ... e assim muita coisa pode ser descoberta e muita coisa pode ser perdida.
LF Folly – Sim, com certeza. E este é o trabalho mais difícil. Uma coisa que eu e Lilian prezamos muito é não colocar nosso sentimento, tentar nos colocar um pouco fora desse universo [a ser estudado]. Se fosse levar em consideração os meus gostos, tentaria priorizar o que considero, pessoalmente, melhor ou pior, para reacender o que me chama mais a atenção ou obstruir de uma vez, calar aquela memória. Nesse trabalho com o patrimônio, que se relaciona com o fato de se ter muitas fontes—é preciso examinar a fonte primária, analisar as fontes secundárias—partimos sempre da pesquisa de fontes primárias. Se tenho a fonte primária, ela pode nos dar subsídios para ir um pouco mais adiante. Se tenho uma fonte secundária—um jornal, por exemplo, o relato de alguém, de um viajante que passou—é preciso tentar não colocar nosso peso individual, como se dissesse: “Não gosto, então, prefiro não estudar aquilo”. Tem-se que ser imparcial, é difícil. Até por pressões externas que existem.
AVS – E como são essas pressões externas?
LF Folly – Várias famílias aqui de Friburgo, às vezes, querem pressionar colocando histórias que sabemos que não são reais daquele fato, daquela pessoa envolvida. E, no final, temos que tentar contar aquela lenda—o barão de Nova Friburgo é um caso clássico, há inúmeras lendas a seu respeito ligadas à escravidão e ao tráfico de escravos, contrariadas por documentos—, temos que mesclar a lenda com o que o documento [histórico] está dizendo, mas tenho que contar a história.
AVS – Mas, do que você está falando, o barão de Nova Friburgo não teria tido escravos?
LF Folly – Não, ele teve escravos. Mas quando entramos no século XX, houve uma tendência a se desmitificar alguma coisas, ou criar outros heróis, como o Tiradentes, ou criar o anti-herói. Rui Barbosa, querendo apagar a história da escravidão no Brasil, destruiu boa pare dos arquivos sobre a escravidão, o Arquivo Nacional perdeu muitas coisas nesse período do Rui Barbosa. O barão foi uma pessoa que chegou a Friburgo com um cargo político, era um procurador de Friburgo na corte [do império]. Começou sua vida como comerciante de escravos, e não traficante, são coisas diferentes. E é óbvio que a lenda é mais interessante. Na história humana, sempre há lendas com muito mais sabor e tempero do que a história nua e crua. O que tentamos fazer, no máximo, ao estudar o patrimônio, é perguntar: “existe a lenda?”. Então, temos que contá-la, mas também temos que contar se existe um outro lado mais provável do real. E isto acontece com inúmeras figuras.
AVS – A respeito dessa presença da escravidão, estudiosos tratam do tema não só do ponto de vista de sua barbaridade e injustiça, em termos de direitos humanos—que já estavam definidos desde a Revolução Francesa e a Declaração de Independência do Estados Unidos—mas também do ponto de vista econômico e cultural: a escravidão criava, não só no escravo, mas também no senhor de escravos, uma mentalidade pouco produtiva, pouco criativa. No Vale do Paraíba, a escravidão criou um marasmo econômico. Como você vê essa questão?
LF Folly – O marasmo é fato, foi um atraso sobremaneira, em várias áreas. Mas hoje, sabemos que há um contraponto na nossa região, na Região Serrana do Rio de Janeiro, de Cachoeiras de Macacu, Friburgo, Cantagalo, Bom Jardim. A escravidão foi diferente em alguns moldes aqui. Uma fazenda no Vale do Paraíba precisava de uma quantidade de escravos para uma produção determinada. Esta mesma produção de café, nesta região, [era obtida pela] metade dos escravos usados no Vale do Paraíba. E por que se dava isto? Aqui na nossa região houve o incremento de algumas famílias, algumas cabeças, que já vislumbravam o problema da escravidão. Tinham escravos, mas sabiam que aquilo teria um tempo para se acabar, viam que aquele modo [de produção] não estava contribuindo, e vários começaram a trazer alguma coisa de tecnologia para cá. As fazendas do nosso interior têm uma grau de incremento de tecnologias muito grandes. Quando se pega um jornal de Cantagalo do século XIX veem-se muitas propagandas de pessoas vendendo equipamentos agrícolas movidos por vapor ou por tração animal e esses equipamentos eram trazidos da Europa. Cantagalo foi berço de muitos maquinários.
AVS – E existe documentação de tudo isto?
LF Folly – De tudo isto. E há fazendas que ainda têm esses equipamentos e há uma literatura inglesa sobre a aplicação desses equipamentos no Brasil e na nossa região.
AVS – Esta nossa conversa seria enorme e não haveria espaço no jornal para reproduzi-la. Mas existe alguma coisa a mais que você gostaria de dizer?
LF Folly – Acredito que os educadores, os professores, as escolas têm que tentar buscar a valorização de trabalhos escolares vinculados à questão do patrimônio, seja imaterial ou material. Acho que somente com esse investimento maciço na educação pode-se mudar Friburgo, pode-se pensar uma Friburgo, daqui a 50, 100 anos, entendendo o que somos hoje, o que fomos. Acredito que os educadores têm que ter essa conscientização, que começa aí. Acho que o papel do professor é o mais nobre e é o que precisa ter mais força.
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