Recordo dele entrando cedo na padaria lá de Madureira. Jeito descontraído, fala mansa e sabida, olhar maroto. Dou um doce a quem lhe adivinhar a idade! Bem, há de fato uma áurea a recobrir certos nomes históricos no mundo da música. Principalmente, se um desses personagens se encontra “vivinho da Silva”, como diria o próprio Monarco, esse mestre da música com quem me deparei por acaso.
Pedi licença e me identifiquei como escritor e amante das poesias de que são feitas suas canções. Pronto. Selou-se subitamente a simpatia. Segundo o próprio sambista, por causa do seu pai, ele tornou-se o compositor que é. “Poeta de primeira meu pai era, rimava como ninguém até substantivo com verbo de ligação, aquele velho danado. Papai foi gênio, isso sim”, segredou saudosamente o cantor.
Bem, inegável admitir que o samba tem lá suas majestades, sabemos disso. Normalmente se criam apelidos em reconhecimento do excelente papel que esses artistas exercem no meio cultural. Mas, e quando a própria marca da realeza vem batizar o sambista? Quero dizer, e quando o mestre assume nome artístico para registrar o sangue azul portelense? Sim, verdade, Monarco da Portela é carimbo de amor dedicado à Escola de Samba do coração; escola do menino que se destacou logo cedo no mundo do carnaval.
Monarco nasceu em Cavalcante, subúrbio do Rio de Janeiro, em 17 de janeiro de 1933. Filho de mineiros, seu nome de batismo, Hildemar Diniz, é de fato pouquíssimo conhecido pelos cariocas e fluminenses em geral. Morou em Nova Iguaçu e vendeu peixe e até utensílios de limpeza na feira livre de domingo. Quando criança, entre uma martelada e outra, na modesta marcenaria da família, ouvia seu pai elogiar Luis Carlos Prestes, e recitar os poemas que compunha para o Jornal das Moças. Aos seis anos de idade, mudou-se com os pais para Oswaldo Cruz, e desde então demonstrou intimidade com o carnaval junto à escola de coração. Jurou ter bebido das fontes dos antigos compositores portelenses como: Antônio Escurinho, Alcides e Juca Redondo. Contudo, elogiou muito mais seus parceiros de composição Paulo da Portela e Alcino (vulgo Ratinho), contou “causos” engraçados sobre Zeca Pagodinho e Beth Carvalho. Ao falar-me da sua juventude, a voz mansa sobressaía; coisa de arrepiar. Impossível não perceber a emoção subir-lhe a garganta. Olhos marejantes, respiração profunda, e eis que dois versos lhe surgem do nada: “No rigor da minha mocidade/ Eu pensava que o mundo era só meu...”. Que coisa linda! Narrou cantando as peripécias juvenis, amores roubados e tudo mais. Difícil não se emocionar. Olhei ao redor. Surpresa: havia uma pequena plateia ali parada. Palmas, muitas palmas, aplausos aos montes para o cantor. Sorriso discreto e o aceno lançado de repente. Ainda na padaria, em tom de aconselhamento, risonho e satisfeito, pagou a broa ainda quente e mais duzentos gramas de mortadela fatiada. Comentei brincando se havia alguma informação que eu não devia revelar aos leitores do jornal, e o mestre entoou novamente: “Pelas ruas ao me ver passar/ Ponha nosso caso no esquecimento”, e finalizou brincando:
_ Tou zoando, sangue bom. Só tenho orgulho das coisas que fiz na vida. Meu legado está aí pra todo mundo ver e ouvir. Meus discos gravados, o amor da minha mulher, meus irmãos de fé de Madureira e meus filhos encaminhados nesse mundão de Cristo.
E lá se foi o ícone do samba, com a áurea majestosa abraçando a simplicidade — e nem lembrou do Prêmio da Música Popular Brasileira que recebeu em 2015, um dos mais importantes da carreira. Isso sim é humildade. E foi, não sem antes cheirar o pacote de mortadela e lançar um aceno de mão exibindo a ginga característica de quem leva a vida leve que Deus lhe deu. Daí cantei, brincando: “vai vadiar, vai vadiar, vai vadiar”, e o tom de gozação agradou aos fregueses e também ao próprio velho de guerra. Gargalhamos.
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