“Lembre-se da criança que você foi um dia”

Três profissionais da educação infantil e uma conversa sobre ensino, família e caráter
segunda-feira, 17 de outubro de 2016
por Ana Blue
Kristel Paixão
Kristel Paixão

“A primeira coisa que é preciso entender é que o professor não é o centro do ensino e do aprendizado. O centro é o aluno, e a educação se faz por ele. Pra ele”, diz Hachel Melengate, professora do segmento infantil de uma escola municipal em Cordeiro. Ainda segundo ela, o papel do professor neste cenário é o de mediador entre a criança e as suas possibilidades de conhecimento. Para completar, ela fecha: “Nós erramos como pais, como professores quando nós esquecemos a criança que fomos um dia”. 

É claro que a educação não deve se limitar à mera transmissão de conteúdos. Não basta aprender quem foi Getúlio Vargas ou decorar a fórmula de Bhaskara, não basta saber soletrar e pôr os pingos nos iis. Mais que isso, é na escola que se aprende a ideia de coletividade, generosidade, responsabilidade, resiliência, enfim, esses aspectos da vida em sociedade que comporão o perfil social e o caráter de uma pessoa.

Nesse processo de formação, é importante que haja interação entre escola, corpo docente e alunos, onde cada parte cumpra com seu papel primal — e auxilie o outro a cumprir o seu. Para sabermos qual é este papel e como ele interfere na formação acadêmica, social e moral do indivíduo, o Caderno Light conversou com três profissionais que trabalham no segmento de educação infantil sobre as relações entre família e escola, pais e professores, Com vocês, as professoras Cintia Amorim e Hachel Melengate e a auxiliar Kristel Paixão. 

A VOZ DA SERRA: Qual o papel social do professor na formação social da criança?
Cintia Amorim:
É fundamental o papel do professor na formação da criança. Através do convívio com a turma e com seu mestre, o aluno vai construindo laços de afeto, nos quais ele percebe a si mesmo com suas individualidades, e começa, gradativamente, a construir o conceito da coletividade e do respeito que devem ter uns com os outros. Assim começa a formação do cidadão consciente de seus direitos e deveres.
Kristel Paixão: O papel do professor é formar a autonomia da criança, nutri-la das regras de boa convivência, e fazê-la perceber-se como parte da sociedade que a envolve...
Hachael Melengate: É importante lembrar também que é tendo consciência do conhecimento anterior, o conhecimento que o aluno traz consigo, de casa, dos pais, enfim, é através deste conhecimento que o professor poderá mediar todos os demais saberes a serem aprendidos em sala de aula. Ele vai atuar dentro do que o aluno já conhece, vai equilibrar o processo entre o saber anterior e o saber construído...

E por falar nos pais, qual a relação deles com a escola? Eles costumam transferir para os professores a responsabilidade sobre a formação moral dos alunos?
Cintia Amorim:
Alguns pais são participativos e sempre estão interagindo com professores e demais funcionários da instituição, porém, devido à correria do dia a dia, muitos se ausentam e não tomam conhecimento dos mais diversos assuntos relacionados a seus filhos e escola e, consequentemente, passam a transferir a formação moral deles ao professor, quando seria de competência da família. As crianças refletem essa deficiência de formação moral no ambiente escolar, muitas vezes através das emoções, principalmente os pequeninos, pois ainda não sabem expressar através da fala...
Kristel Paixão: Os pais são parte continuada da escola na formação da criança. Mas infelizmente a responsabilidade da educação e formação da criança na sociedade acaba, muitas vezes, caindo sobre o professor.
Hachel Melengate: A relação ideal dos pais com a escola deveria ser a de parceria. Eu costumo dizer para os pais dos meus alunos que nós somos sócios de uma pequena empresa — uma pequena empresa chamada criança — e como empreendedores, queremos que ela seja bem-sucedida. Se um dos sócios se ausentar, o outro vai ficar sobrecarregado. Se um divergir das decisões e não houver diálogo, a empresa acaba falindo. Outra coisa: não pode haver ciúmes nem culpabilizações. Se o pai está sempre culpando o professor, ou vice-versa, por algum eventual fracasso do aluno, nunca essa equação será resolvida. É preciso haver parceria entre todos os elos dessa corrente, é preciso que os pais estejam presentes na escola... porém, na prática, não é isso que acontece. Os pais muitas vezes são ausentes na vida da criança, não só acadêmica, como afetiva também, e essa ausência se reflete em todos os aspectos: crianças com famílias ausentes frequentemente têm problemas com a autoestima, e dessa forma, muitas vezes não conseguem aproveitar ao máximo o que a escola tem a oferecer. E a escola não é um ambiente apenas para a criança e o professor. É um lugar para a família inteira.

Como é o dia a dia em sala de aula? 
Cíntia Amorim:
Nosso cotidiano é feito de contação de histórias, muita conversa explorando a oralidade das crianças. Faz parte de nossa rotina o resgate de músicas e brincadeiras folclóricas, atividades artísticas, além de muitas atividades que explorem o corpo, o movimento e interação entre os alunos. E com a criação dos laços entre educador e criança eles passam a dividir suas alegrias, desejos, carinho e também passam a repartir suas frustrações e medos, com os quais retribuímos com afeto e dedicação.
Kristel Paixão: Na educação infantil é nítido tudo o que a criança passa, tudo o que acontece em casa reflete na escola. Às vezes ela fica agitada, às vezes quieta. É bem perceptível...
Hachel Melengate: Fora que não dá pra pensar no dia a dia da escola real sem fazer o contraponto com o que deveria ser a escola ideal. A escola ideal deveria ser um ambiente lúdico que promovesse totais condições para o aluno desenvolver suas capacidades, mas mais uma vez, não é o que acontece. As escolas públicas, por exemplo, em sua maioria não oferecem um espaço favorável e de qualidade para o aluno desenvolver seu potencial plenamente. Poucas têm prédios amplos, ou salas grandes, ou bibliotecas decentes, os professores são pouco capacitados. Frequentemente buscam novas formações por si mesmos, coisa que, a meu ver, deveria ser amplamente oferecido pelo governo... Aí tem o lado da criança também, que tem outras necessidades além dessa. Necessidades que envolvem demandas vindas de casa, por exemplo. Muitas estão estressadas, muitas reproduzem na escola agressões verbais e físicas sofridas em casa... 
A tal ausência...
Hachel Melengate: Sim, a falta de um convívio satisfatório, onde o adulto dê realmente atenção para a criança, um tempo de qualidade, exclusivo ao universo dela, às brincadeiras, não dividido entre os afazeres da casa.

Gostaria de dividir com os leitores do Light alguma experiência em especial? Ou alguma orientação quanto à educação dos pequenos?
Cintia Amorim:
Ah, sim. O carinho e afeto que esses pequenos dedicam a nós, professores. Sempre é especial e nos move a trabalhar cada vez mais por eles! Tornar-se um professor e lecionar é um dom, do qual nunca me arrependo! As dificuldades do cotidiano acabam quando nos deparamos com o desenvolvimento das crianças e sua alegria em aprender! É muito importante a presença da família nesse processo, através da conversa, do carinho, da atenção, das brincadeiras e até dizendo “não”, quando necessário.
Kristel Paixão: O que me move a essa profissão, principalmente na educação infantil, é fazer parte da evolução da criança. O feedback é o mais sincero.
Hachel Melengate: O que eu gostaria de dizer agora, no final, é que o conhecimento é ligado ao prazer. Se não há prazer, não há aprendizado. Por isso, é fundamental que os pais brinquem com seus filhos, que os professores brinquem com seus alunos, que as crianças brinquem entre si. O convívio com o próximo, o exercício da cidadania, o respeito, o amor mútuo são construídos através das brincadeiras das crianças. No mais, eu gostaria de parabenizar os professores, em especial os da rede pública, por esse dia. Não é fácil fazer educação num país que gasta tanto dinheiro com banquetes de todos os tipos para deputados mas economiza altos montantes na educação para a vida. Que cada um de nós, professores, nunca nos conformemos com o sistema. Pelo contrário, nos rebelemos cada vez mais, munidos da nossa maior arma: a educação!

  • Cintia Amorim

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