Lembranças que contam história

quinta-feira, 25 de novembro de 2010
por Jornal A Voz da Serra
Lembranças que contam história
Lembranças que contam história

Maurício Siaines

Nagib José Pedro é uma figura sempre presente no dia a dia de Lumiar, conhecido por jovens e velhos, moradores ou visitantes. É possível vê-lo todos os dias, sentado a uma cadeira diante de sua casa na Praça Carlos Maria Marchon, voltado para o movimento e para suas memórias.

O pai de Nagib, o imigrante libanês Júlio José Pedro, nasceu em 15 de junho de 1889 e veio para o Brasil aos 18 anos. Aqui se casou na igreja de Lumiar, em 15 de julho de 1911, com Alcebiadina Januária Boy, nascida em 28 de outubro de 1896. Ele tinha 22 anos; ela ainda não completara 15. Foram morar em Boa Esperança, onde Nagib nasceu, em 1920.

Buscando detalhes de vidas humanas que compõem a história da localidade, Nagib conversou com A VOZ DA SERRA, em sua casa, em uma manhã chuvosa de domingo. Aqui ficam alguns momentos dessa conversa.

AVS – Quando aconteceu essa mudança de sua família de Boa Esperança para a Pedra Riscada?

Nagib José Pedro – Foi, mais ou menos, em 1930.

AVS – Então o senhor já era nascido

Nagib – Era. Muito depois, meus pais voltaram para Boa Esperança e eu os trouxe de volta para uma casa que eu tinha no centro de Lumiar, onde meu pai faleceu [em 16 de julho de 1967]. Minha mãe faleceu no Hospital São Lucas [em 25 de setembro de 1970].

Neste ponto, Nagib interrompeu a entrevista para procurar um documento, que trouxe em seguida. Era uma folha amarelecida de papel almaço, onde havia o registro de alguns acontecimentos da vida familiar, com a letra desenhada de sua mãe, com alguns dados acrescentados por ele, depois da morte de Alcebiadina.

AVS – Nessa folha ela anotava coisas que aconteciam. Era uma espécie de diário...

Nagib – É. E eu estou conservando por causa da letra dela.

AVS – Voltando à história da sua família, o senhor calcula que tenha sido lá por 1930 que se mudaram para a Pedra Riscada.

Nagib – É, mais ou menos. Eu tinha, então, dez anos... não, deve ter sido mais tarde, lá por 1935.

AVS – O senhor já trabalhava, então?

Nagib – Já. Trabalhei na lavoura, no comércio e trabalhei muito na estrada com tropas de burros, viajando daqui para Friburgo... três dias de viagem para ir e voltar.

AVS – O senhor trabalhou muito com tropas de burros?

Nagib – Trabalhei uns dez anos, mais ou menos, com tropas de burros. Pegávamos as mercadorias dos lavradores, daqui, de Macabu, de Boa Esperança.

AVS – Quantos burros compunham essas tropas?

Nagib – Papai tinha 15 burros. Eram dois lotes, o lote da frente, como se dizia, tinha oito burros, todos brancos, e o lote de trás tinha sete, cada um com um tropeiro. Na frente de todos ia o burro de guia, que levava um peitoral com campainhas penduradas, que os outros burros acompanhavam.

AVS – E nessas viagens daqui para Friburgo sempre iam os 15 burros?

Nagib – Quase sempre.

AVS – O senhor já me disse que sua família tinha lavoura de milho, feijão e café. Esses produtos eram muito vendidos?

Nagib – O que também vendia muito era batata. A gente fazia, pelo menos, uma viagem por semana. Às vezes dávamos duas viagens. E a tropa ia sempre lotada. De lá não se trazia quase nada, só sal, açúcar, querosene. Hoje, a gente traz tudo de lá. O que trazíamos era para vender no comércio.

AVS – Então seu pai também tinha comércio, além das terras. O senhor quase sempre levava as tropas? Como eram as viagens? Era a pé?

Nagib – Havia dois tropeiros que iam a pé. Eu ia a cavalo, porque havia assumido a responsabilidade. Meu pai entregou os negócios para mim quando eu tinha 14 anos de idade. A gente saía daqui, pernoitava no rancho, no colonial 61, no Alto 50, em diversos lugares. Dormíamos no rancho, que tinha paredes de barro e telhado de tabuinhas, feito de madeira.

AVS – E acordavam a que horas?

Nagib – Às 2h ou 3h. Saíamos daqui mais ou menos às 8h e levávamos quatro ou cinco horas para chegar ao rancho. Lá nós descarregávamos os animais, passávamos água no lombo deles para refrescar e os soltávamos para pastar. No fim do dia, nós os chamávamos e eles vinham para comer o milho, que era a ração. Depois, dormíamos até a madrugada. Era lá no alto, no meio da mata. Diziam que lá tinha até onça, mas eu não tinha medo. Íamos juntar os burros, eu ia para um lado e os empregados para o outro. Depois, tomávamos café e almoçávamos antes de sair, com o dia raiando e os burros já arrumados. Trabalhei com as tropas até os 21 anos.

AVS – E, então, o senhor foi chamado para o exército?

Nagib – É, em novembro de 1941. Aí fui para a inspeção de saúde, em São Gonçalo, e para o treinamento, em Valença.

AVS – E ficou direto, até o final da guerra, em 1945?

Nagib – O serviço militar era de um ano, mas como o país entrou em guerra [em 1942], ficamos direto. Fiquei um ano sem vir em casa. Até que minha mãe mandou uma carta para o comandante e ele me deu uma licença de oito dias. Fizemos muitos exercícios militares lá em Valença. Éramos sete filhos de Lumiar servindo lá.

AVS – Inclusive o Antônio Durval de Moraes, que morreu na Itália.

Nagib – É. Ele era de Macaé de Cima e servia no comando. Um dia faltou um homem na equipagem de padioleiros e mandaram o Durval lá para a frente para substituir. Os outros já tinham experiência e sabiam que, quando escutassem o eco da granada do canhão, tinham que se deitar no chão. Ele ficou em pé e, quando a granada explodiu, mandou estilhaços em sua barriga que o mataram. Quando eu soube, fui lá no local de reconhecimento e o vi. Foram mais de 500 brasileiros mortos.

AVS – Mas, daqui de Lumiar, só o Durval.

Nagib – É, de Friburgo inteira.

AVS – O senhor participou de combates lá na Itália?

Nagib – Eu participava, mas não podia usar armas. Eu trabalhava em um posto avançado para socorrer os feridos. Nós usávamos uma braçadeira de neutralidade, por isto não podíamos carregar armas. Mas ficávamos na linha de frente.

AVS – E quando a guerra acabou, como foi o sentimento do pessoal que estava lá? E, depois, na volta ao Brasil?

Nagib – Foi uma alegria para nós todos. E no dia 2 de julho de 1945, nós embarcamos em Nápoles para voltar ao Brasil. Desembarcamos no armazém 3 do Cais do Porto, no Rio de Janeiro. Havia muitas moças que nos deram lanche. A filha do Getúlio Vargas era uma delas. Depois, fomos desfilar na Avenida Rio Branco. Mas o desfile não pôde chegar ao final, porque a alegria do pessoal era tão grande que nos embolamos todos. Depois fomos para diversos quartéis e tivemos 20 dias de licença para visitar os familiares.

AVS – E a volta para Lumiar?

Nagib – Meus pais, que moravam na Pedra Riscada, fizeram uma festa, um grande baile, com muitos amigos.

AVS – E os outros?

Nagib – Cada um foi recebido por sua família, que fez sua festa. Antes mesmo de dar baixa, combinei de comprar o armazém, que era do Manoel Sodré, pai do Manoel Antônio [professor de história e presidente da Euterpe Lumiarense]. Depois comprei esta casa, que foi construída em 1933. Eu comprava as mercadorias em Friburgo para revender aqui. Também ia ao Rio, quase todo mês, fazer compras. Principalmente, na Rua da Alfândega, na Rua Senhor dos Passos. Negociava com calçados, roupas.

AVS – Nessa época, o transporte ainda era feito por tropas de burros?

Nagib – No início, era com tropas de burros, mas, mais tarde, comprei um caminhão, que foi o primeiro ou o segundo de Lumiar.

AVS – No caminhão, quanto tempo levava uma viagem daqui a Nova Friburgo?

Nagib – De uma a hora e meia a duas horas. O caminhão ia muito lotado, além das mercadorias, naquela época ia muita gente, de 10 a 20 pessoas, que iam fazer compras em Friburgo.

AVS – Havia luz elétrica aqui?

Nagib – O seu Eugênio Guilherme Spitz, que foi proprietário de toda essa área [do centro de Lumiar], tinha um engenho de moer café e por isso tinha um gerador, que fornecia luz até dez horas da noite. E a gente pagava por lâmpada, mas não podia ter muitas lâmpadas, só uma cinco, de 60 watts. Quando anoitecia, um de seus filhos ia ali e abria a passagem da água, que fazia o gerador funcionar.

AVS – Outra coisa em que o senhor sempre esteve presente foi o futebol, o senhor sempre gostou de futebol, não é?

Nagib – Sempre gostei. Joguei aqui em Lumiar, depois onde servi, em Valença, onde cheguei a fazer parte de um time da primeira divisão de lá. Era meio-campo, jogava com a camisa 5, de “center-half”. Muita gente só fala de futebol comigo, mas minha vida não foi só futebol.

AVS – Mas o futebol era uma coisa importante.

Nagib – Era importante. A camisa do Lumiar Futebol Clube surgiu com uma história interessante, acontecida com meu tio, Jorge Pedro, que também trabalhava com tropas de burros. Encomendaram a ele, uma vez, um jogo de camisas para o time, com as cores do Fluminense [do Rio]. Chegando lá, na Casa Knust, não encontrou camisas do Fluminense, mas havia do Botafogo e ele resolveu comprar. E aí ficou. Isto aconteceu antes da guerra. Quando eu vim da guerra, fiz uma lista com os amigos para comprar novos jogos de camisas e calções, iguais aos do Botafogo. Depois, assumi o clube.

AVS – As pessoas acompanhavam o Lumiar Futebol Clube?

Nagib – Em todo jogo ia caminhão lotado, a torcida acompanhava, inclusive senhoras. Quando o jogo era aqui no campo, ficava repleto de gente.

AVS – O futebol atrapalhava o trabalho?

Nagib – Não, não atrapalhava. A gente só treinava aos sábados à tarde, às vezes, nem treinava, só jogava. Mas os jogadores jogavam com amor, com prazer. O pessoal da Vila Mozer sempre torcia para o Lumiar Futebol Clube. Mais tarde, em 1986, o time do Lumiar foi campeão rural e fomos para a cidade e fomos campeões lá também. Inclusive, conquistamos a taça de 60 anos da Liga Friburguense. E eu fui considerado o melhor presidente do ano.

AVS – E o pessoal daqui acompanhava os jogos dos times do Rio pelo rádio. Pegava bem o rádio, aqui?

Nagib – Pegava. Tempos mais tarde, eu comprei uma televisão que funcionava com bateria, onde assistimos à Copa do Mundo de 1970.

AVS – O que foi especialmente emocionante nas transmissões de rádio e televisão?

Nagib – Foi uma que deixou tristeza para a gente, aquele jogo que o Brasil perdeu, no Rio, para o Uruguai, em 1950.

AVS – Atualmente, o senhor está sempre aí, acompanhando o que acontece na praça, sempre com alguém que se aproxima do senhor para conversar. O senhor viu tudo ir mudando, não é? Já existia a praça quando o senhor voltou da guerra, em 1945?

Nagib – Existia. Ali tinha uma árvore grande e sempre vinham pessoas jogar malha, na praça, quase todos os dias. Hoje, passam ali meus amigos, eu me distraio, vejo o movimento...

AVS – ...tudo mudando.

Nagib – Tudo mudando.

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