Júlia Mesquita de Paula Oliveira tem 12 anos de idade. Vai ao colégio, brinca e apronta travessuras como toda criança. Não fosse por um pequeno detalhe, ela seria como qualquer outra menina. Há alguns meses, a pequena ganhou mais um pai e soma, na certidão de nascimento, seis avós; um casal por parte da mãe e dois por parte dos pais.
O caso, chamado de multiparentalidade — isto é, a possibilidade jurídica de inserção de mais de um pai ou de uma mãe no registro civil da pessoa —, é recente no Brasil e foi o primeiro realizado pela Justiça em Nova Friburgo. Na verdade, a ação teve início em 2012, como um processo de negatória de paternidade, pedido à Defensoria Pública pelo pai biológico de Júlia, Guilherme Oliveira.
Ana Paula Dieguez, especialista em direito da família e sucessões, foi advogada do processo e conta como tudo aconteceu. “Fui procurada pelo pai biológico da criança que, somente depois de anos descobriu ser o progenitor e que a mesma já havia sido registrada por outro, o pai afetivo”, explicou.
Segundo Ana Paula, o pai biológico, então, deu entrada a um pedido de negação da paternidade, pedindo a alteração do registro de nascimento. Mas, por falta de tempo devido a constantes viagens, abandonou o caso. Alguns anos depois, já tendo o convívio com a filha, Guilherme teria procurado Ana Paula para retomar o pedido de negatória de paternidade do pai afetivo e solicitar o reconhecimento dele como legítimo.
“Assim que conheci a causa, imaginei que, se houvesse vínculos afetivos muito fortes entre a criança e o pai afetivo, seria difícil que o juiz aceitasse o pedido de negatória de paternidade. Para averiguar isso, durante o processo foram realizados estudos psicossociais, que incluem entrevistas com todas as partes envolvidas, ou seja, mãe, os dois pais e a criança. Ao fim de toda a pesquisa foi constatado que a criança já havia estabelecido laços de afeto com ambas as partes”, disse ela. “Foi aí que eu sugeri ao meu cliente a proposta de um acordo com o pai socioafetivo, com reconhecimento da dupla paternidade (multiparentalidade). De início ele queria que tirasse o nome do pai socioafetivo, mas depois de ver os benefícios para a criança, ele aceitou”, disse Ana Paula.
Ainda segundo a advogada, a ideia de filiação tem se transformado ao longo do tempo. “Há alguns anos as pessoas tinham a visão de que pai é o biológico, mas muitas vezes a criança tem um pai socioafetivo que é muito mais presente”, argumentou. Esse tipo de ação ainda é tão incomum na comarca que, segundo a advogada, foi necessário chamar um técnico em informática para fazer as mudanças na certidão de nascimento de Júlia e acrescentar o nome de mais um pai, mais uma avó e um avô.
O acordo judicial sobre a paternidade de Júlia definiu ainda o direito à convivência, à prestação alimentar, assim como todas as responsabilidades legais por ambas as partes. “Todos os outros benefícios provenientes, como planos de saúde, pensão e herança, por exemplo, a criança também têm direito”, explicou Ana Paula.
Para a psicopedagoga Jeany Amorim, os núcleos familiares vêm passando por diversas transformações ao longo dos anos, sendo o tipo de organização familiar o menos importante para o bem-estar da criança. “‘Família é prato difícil de se preparar’, já disse tão poeticamente o autor Francisco Azevedo em seu livro ‘Arroz de palma’; mas o ingrediente que não pode faltar é amor, base que toda criança precisa para crescer em harmonia. Sejam pais separados, casais homossexuais, mães ou pais solteiros, o que faz a diferença para o crescimento e desenvolvimento de uma criança é a segurança e o respeito que vem através do amor e dedicação que lhe é dispensado”, disse.
Jeany conta que tem atendido cada vez mais a casais que se separam e reconstroem suas vidas, mas que não perdem os vínculos de afeto e responsabilidades com seus filhos. “Infelizmente, também há situações em que o pai ou mãe biológicos acabam cortando o relacionamento com os filhos, deixando esse espaço de referência para que o padrasto ou madrasta assumam. Quando esses espaços de ausência são preenchidos com o afeto e respeito, não há prejuízo algum. Inclusive, muitos meninos e meninas hoje vivem a experiência de dois núcleos familiares, quando têm pais/mães e padrastos/madrastas presentes em suas vidas”.
Sobre o caso de Júlia, ainda segundo a psicopedagoga, essa primeira ação de reconhecimento de multiparentalidade em Nova Friburgo representa uma conquista e abre caminho para que muitas outras pessoas recorram à possibilidade jurídica. “Já existem diversas situações como essa, mas as famílias não sabem que é possível ter no registro o pai ou a mãe de afeto. Não que um documento deva ser o diferencial nas relações, mas num país burocrático como o nosso, certamente ele gerará maior segurança tanto para os pais como para os filhos”, argumentou.
“Sem dúvida alguma, quanto mais amada, cuidada, estimulada e cercada de referência positiva é uma criança, melhor. E pais de afeto são aqueles que escolheram esses filhos... O que de mais bonito poderia nos unir a alguém?”, pontuou Jeany.
Outros casos
No final do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou o julgamento de um recurso especial, a respeito de um pai biológico que pedia o reconhecimento da paternidade, mas não queria arcar com as responsabilidades, como pensão alimentícia, alegando que as mesmas eram supridas pelo pai socioafetivo.
Na ocasião, o STF divulgou uma nota explicando que a existência de paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico. O relator do recurso extraordinário 898060, ministro Luiz Fux, considerou que o princípio da paternidade responsável impõe que tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto aqueles originados da ascendência biológica, devem ser acolhidos pela legislação. Segundo ele, não há impedimento do reconhecimento simultâneo de ambas as formas de paternidade — socioafetiva ou biológica —, desde que este seja o interesse do filho.
Para o ministro, o reconhecimento pelo ordenamento jurídico de modelos familiares diversos da concepção tradicional não autoriza decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos.
Em junho de 2014 outro caso, ocorrido no Acre, chamou a atenção para o assunto. Na época, a Justiça daquele estado garantiu que uma menor de idade também passasse a ter o nome de dois pais em sua certidão de nascimento: o que a registrou e o biológico. O juiz sentenciante, Fernando Nóbrega, da 2ª Vara de Família de Rio Branco, falou sobre o caso e explicou que vínculo familiar não pode ser atribuído apenas ao elemento genético. “Atualmente, há uma nova realidade das famílias recompostas, com multiplicidade de vínculos, formados, principalmente, pela questão afetiva. Se não houver vinculação entre a função parental e a ascendência genética, mas for concretizada a paternidade — atividade voltada à realização plena da criança e do adolescente — não se pode negar a multiparentalidade”, disse.
Sobre o caso de Nova Friburgo, a advogada Ana Paula Dieguez atenta para as razões de ordem ética — que incluem o sigilo profissional, bem com o segredo de justiça que o tema envolve — motivo pelo qual não revelou a identidade das partes envolvidas. Desta forma, vale ressaltar que os nomes dos envolvidos citados nesta reportagem são fictícios e foram utilizados apenas para ilustrar o caso.
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