“O Gama [Grupo de Artes, Movimento e Ação] não tem verdades para falar, o Gama tem histórias para contar. Há 45 anos está escrevendo uma história de artes e cultura, profundamente irmanado com este torrão maravilhoso chamado Nova Friburgo”. Assim Jaburu, que no registro civil é Júlio Cézar Seabra Cavalcanti, iniciou formalmente a entrevista que deu a A VOZ DA SERRA, depois de uma longa conversa, com a presença de Chico Figueiredo, atual presidente do grupo, em uma tarde de sábado, no restaurante Auberge Suisse, em Amparo, Nova Friburgo.
Contou muitas histórias, inclusive a sua própria, uma vida que se dividiu entre o futebol, a produção de atividades artísticas e o trabalho no Banco do Brasil. Muita gente se lembra de sua performance como goleiro do Friburgo Futebol Clube. Antes, havia defendido diversos outros clubes, inclusive o Atlético Mineiro. Com o futebol andou por diversas cidades de Minas Gerais. Veio para Nova Friburgo onde, no início, foi “um maravilhoso vagabundo, um vagabundo chapliniano, curtindo esta Serra dos Órgãos fantástica durante dois anos e pouco, jogando futebol pelo Friburgo, sendo bicampeão da cidade e campeão do estado pela seleção de Nova Friburgo, tendo também jogado basquete na Sociedade Esportiva Friburguense”.
O Gama é um monumento vivo de Nova Friburgo e Jaburu, um de seus fundadores, além de cidadão comum, que pode ser encontrado pelas ruas, é personagem que revela parte da história recente e parte da alma da cidade.
A VOZ DA SERRA – Você está ligado a diversas atividades em Nova Friburgo que requerem criatividade. E nesta cidade, apesar de um lado conservador, há uma enorme inquietação, muito perceptível por quem chega de outros lugares. Como você, que também não é daqui, vê isto?
Jaburu – Eu sou de Viçosa, Minas Gerais, e vim para cá por causa do meu pai, que veio a ser chefe da estação [de trem] da Leopoldina. Acho até que é válido a pessoa ter esse olhar, entendendo Friburgo como uma cidade monolítica. Mas é um ledo e profundo engano, porque, como o ser humano é complexo e Friburgo é formada por dezenas de milhares de seres humanos, ela é complexa. E é mais complexa ainda porque as figuras que vivem em Friburgo, por razões quase inexplicáveis e misteriosas, são profundamente ricas. E Friburgo tem uma história ímpar que precisa ser mais difundida e conhecida para que nós friburguenses e pessoas de outros rincões conheçam essa história e passem a admirar cada vez mais este lugar, que não é monolítico, é profundamente rico e complexo e cada vez o observador descobre lugares e pessoas de uma beleza ímpar. É uma cidade profundamente difícil para se viver nela, mas quando se consegue, vive-se muito bem aqui, com toda essa complexidade e riqueza.
O que você está chamando de monolítico?
Quem viu aquele filme 2001 - Uma Odisseia no Espaço entende o que estou falando; aquela placa de cimento, que apenas é cimento sempre... e Friburgo não é isso, é uma complexidade de valores e de pessoas, de sonhos, muitos dos quais nós não conhecemos ainda. E precisamos conhecer os sonhos dessa comunidade e a sua história para que, cada vez mais, possamos interagir com profundidade e verdade com esse lugar. É assim que eu vejo: não somos monolíticos, não somos simples, como pensam as pessoas que dizem apenas que Friburgo é muito conservadora. É também, mas não é só conservadora.
O que faz Nova Friburgo ser diferente de outras cidades?
Tem diferenças. A marca talvez seja a nossa colonização. Eu conheço mais ou menos bem várias cidades do Brasil e nunca vi uma colonização tão rica como a de Friburgo. São pessoas que vieram para construir suas vidas. Não estou falando só dos suíços, deles também, mas dos alemães, franceses, italianos ... os suíços são importantes como o início da geração desse espaço, mas a continuidade e a visão cultural vem mais, a meu ver, dos libaneses, dos alemães, dos franceses, dos italianos, que aqui chegaram e não colonizaram ... esta palavra é muito ruim. Eles começaram a criar esse espaço profundamente rico porque somou valores desses países todos para nos dar uma resultante completamente ímpar no Brasil. Nós podemos pegar, por exemplo, Blumenau [em Santa Catarina] que é uma cultura profundamente alemã; se falarmos de Viçosa, encontramos uma cultura em linha reta. Quando se pega Friburgo, fica-se admirado com a riqueza e a multiplicidade. Essa interação de muitas culturas deu uma resultante muito rica. E, como todo lugar do mundo, Friburgo vive momentos de altos e baixos. Nos momentos de alta é uma maravilha. Hoje nós vivemos um momento de baixa, não só por causa desse fenômeno climático violento que aconteceu, mas principalmente pela decadência econômica da cidade. E não há nenhum país ou cidade que possa prosperar com a economia fraca. Mas Friburgo está reagindo e, a meu ver, há nela dois vetores importantíssimos que, bem trabalhados, vão levar esta cidade novamente à plenitude do bem-viver, que são a educação e a cultura e o turismo. Essas duas coisas juntas, bem trabalhadas, com investimento, sem mentiras, sem demagogia, sem oportunismo, vão fazer essa cidade voltar a ser um espaço fantástico.
Como estávamos conversando antes, as cidades têm alma ...
... uma energia, ou uma sinergia, que é melhor ainda.
E com essa desgraça toda que aconteceu agora, você acha que isto vai abalar essa alma? E como abalaria? O que você imagina?
A todo estímulo corresponde uma resposta igual e contrária, não é? Eu tenho certeza absoluta — retirando os oportunistas, as pessoas que não são bem voltadas para Nova Friburgo — nós vamos reagir à altura e daqui a três, quatro anos voltaremos a ter uma plenitude física maravilhosa, e mesmo não tendo essa plenitude, não vai se alterar o comportamento cultural, político e social do povo de Friburgo. O que precisamos é que os nossos mandatários, os nossos políticos — responsáveis diretos pelo gerenciamento desse espaço — tenham, além da capacidade, dignidade e comportamento ético para não praticarem, nem deixarem que aconteçam atos desabonadores. Voltando, ainda ao que falamos anteriormente, nunca se deve ficar surpreendido com as atitudes humanas. Devemos ficar é com raiva, furiosos. [Jacques] Lacan diz muito bem que, em se tratando do ser humano, nunca diga “é impossível”. Nós seres humanos somos capazes de todas as atitudes, todas as coisa boas e todas as coisas ruins. Esperamos, então, que os responsáveis tenham um comportamento a altura das necessidades de Friburgo.
Fale, agora, um pouco do Gama.
O Gama foi fundado exatamente dois anos depois maior noite escura da história do Brasil, que foi a quartelada, dita revolução, de 1964. O Gama foi fundado em 1966 para interagir com essa palavra mágica ... é como a Cecília Meireles fala: “Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Era a preocupação que nós tínhamos na época ... estávamos muito sufocados com aquele processo ditatorial e isto nos levou a fundar o Gama, com o desejo de interagir com Friburgo, com o estado e talvez até com o Brasil, fazendo textos realmente significativos na dramaturgia nacional e mundial. O Gama sempre teve a proposta de não ser nem alienado, nem alienante. Respeitamos todo mundo que faz esse teatro tipo Zorra Total, baseado nessa mídia de massas fantástica, mas não admiramos. Respeito é uma coisa e admiração é outra. Admiramos aqueles que tentam, como o Gama, montar espetáculos que ultrapassem a flor da pele e cheguem no âmago das pessoas, fazendo-as se conhecerem melhor, refletirem e terem atitudes dignas para com a comunidade. Esta é a função maior da arte. A arte precisa da diversão, do lazer, mas precisa ter conteúdo. E essa tem sido a história do Gama, das montagens que ele fez. Faz escuro, mas eu canto, a primeira peça, com textos fantásticos de [Carlos] Drummond [de Andrade], [Manoel] Bandeira, [Friedrich] Dürremat, [Bertold] Brecht. O Auto da Compadecida, A História do Zoológico, Tiradentes Brasil Opus 72 — que fizemos junto com essa figura notável de Nova Friburgo que é o Girlan Miranda, onde dizíamos: “Nada nem ninguém poderá impedir que se propague o som da voz que foi sufocada. Embora amordaçada a boca, a voz continuará ressoando límpida, dizendo que esta terra pertence a seu povo e a ele compete governá-la”. Isto em 1972. Fizemos esse espetáculo em vários lugares, inclusive em Ouro Preto, a terra de Tiradentes. Em Niterói, pediram bis depois do espetáculo. Havia gente do Dops [Departamento de Ordem Política e Social] lá. Era um momento difícil.
Então, desde a origem, o movimento e a ação do nome do Gama — Grupo de Artes, Movimento e Ação — significam movimentos e ações além de representações artísticas?
É, exato. Nossa intenção era essa, não apenas ser bonitinho. É preciso ter um conteúdo, um momento de reflexão. Nós montamos agora Palhaçada, um espetáculo mais voltado, segundo se disse, para as crianças e foi um charme, uma beleza. Tinha Nino Rota (do [Federico] Fellini), Milton Nascimento, Gilberto Gil, Tchaikóvski, tinha um momento de Stravinski... Então, as crianças ouviam realmente música de altíssimo nível. É um processo transformador. E o grupo surgiu com esse desiderato. Gama, em física, é força, partimos dessa ideia. Nós não acreditamos no adjetivo somente, precisamos buscar sempre a ação, o substantivo, o verbo. Já dizia lá o João Cabral de Melo Neto: “Não se pode defender a vida apenas com palavras”. Disse isto em Morte e Vida Severina, que teve a música do genial Chico Buarque de Holanda.
Que haja movimentos culturais como o Gama em cidades como o Rio de Janeiro ou São Paulo não é tão surpreendente porque são cidades com alguns milhões de habitantes, o que aumenta a probabilidade de surgirem pessoas com capacidade e vontade de se envolverem nesse tipo de movimento. Mas Nova Friburgo não tem 200 mil habitantes ... Como você vê isto?
O Gama está aí, existe e é forte, mas não podemos deixar de olhar uma Euterpe Friburguense, com mais de 150 anos, uma Campesina, uma Euterpe Lumiarense, também centenária. O Gama é muito feliz por ter podido saltar três ou quatro metros, mas sabemos que historicamente saltam-se 20, 30. Nós fazemos a nossa parte, como naquela história do passarinho que joga aquele pouquinho de água para apagar o incêndio. Acho que, através dessa porção de pessoas de outros países que vieram para Friburgo, que ajudaram a construir esta cidade, foi inoculado nesta cidade um vírus de arte e cultura. É por isto que tem tantas manifestações em Friburgo com pessoas que vêm para cá, residem, amam e começam a trabalhar. O que é necessário para que Friburgo alcance o apogeu artístico-cultural é o maior respeito ao artista de Friburgo, à raiz de Friburgo, às nossas coisas, sem jamais ser contra as coisas de fora. Não podemos ser xenófobos de maneira nenhuma, porém precisamos respeitar profundamente as nossas coisas. Não é justo que em um festival ou outro movimento um grupo de fora ganhe 100 x e se ofereça a um artista de Friburgo ½ x para ele se apresentar. Os artistas de Friburgo, na hora que souberem se unir mais, na hora em que estivermos mais juntos, vão fazer desta cidade uma das mais importantes do Brasil na área de arte e cultura. Nós temos excelentes pintores, escultores, músicos, pessoas ligadas à literatura com altíssimo nível, gente de Friburgo e gente de fora que está aqui fazendo trabalhos maravilhosos, artes cênica. Estão surgindo muitas pessoas boas na área de circo. Agora, falta dos dirigentes essa visão perfeita sobre essas coisas que estão olhando e não veem.
O Gama tem o projeto de criação de museu com peças representativas de pessoas da cidade, feitas em papel machê, associadas a computadores onde estarão armazenadas a história e as histórias dessas pessoas. Ao lado da peça exposta, será possível clicar sobre um arquivo em que estará contada a história daquela pessoa representada, parte da vida de Nova Friburgo. Nesta peça, Laercio Ventura, diretor de A VOZ DA SERRA, filho de Américo Ventura Filho, criador do jornal em 1945.
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