Intolerância religiosa: uma mancha na história da humanidade

O último sábado foi o Dia Mundial da Religião e o Dia do Combate à Intolerância Religiosa
segunda-feira, 23 de janeiro de 2017
por Jornal A Voz da Serra
Intolerância religiosa: uma mancha na história da humanidade

Se tantas religiões, tantos deuses, tantas crenças – e descrenças – fizeram e ainda fazem parte da história do Planeta Terra, como entender que até hoje, em pleno século XXI, com toda a sua tecnologia, saberes e experiências, ainda haja intolerâncias, inclusive religiosas? Se cada um de nós tem na mente e no coração os elementos que nos fazem ser o que somos, com nossas individualidades, como pode alguém agir de forma desrespeitosa a estas convicções? Convicções estas que são plurais, que não são e não podem ser engessadas dentro desse ou daquele pensamento, daquele padrão. Se tratando de uma coisa tão íntima, como o sentimento de se acreditar ou não numa filosofia, nesse ou naquele deus, ou deuses, é inadmissível que ainda vemos cenas de intolerância religiosa no dia a dia. Os jornais estão recheados com matérias desse tipo de desrespeito. Desrespeito que vai desde o massacre psicológico das filosofias avessas às crenças dos agressores, como do massacre propriamente dito de povos e grupos étnicos. As chamadas “bruxas” da Inquisição, os antigos povos das Américas, Cruzadas, sunitas x xiitas, Estado Islâmico, Boko Haram, judeus x árabes, um milhão de tutsi mortos por hutus em Ruanda, santos católicos e estátuas religiosas de várias religiões destruídas em nome de um “verdadeiro Deus”, apedrejamento de “infiéis” tanto por parte de radicais ditos mulçumanos quanto por quem discorda ao ver uma menina pequena sair de um centro de candomblé com roupas típicas de sua crença. Violência moral e física formaram o currículo dos intolerantes que se acham donos da verdade, da religião, dos ensinamentos superiores. Bastante comum ainda é que as religiões seja apenas um pano de fundo para encobrir interesses econômicos, conquistas de território, de espaço, de propriedades, de almas. O fato é que novas ou antigas formas de massacre religioso continuam a cada dia assombrando quem acredita na tolerância, no respeito mútuo e na paz entre os seres humanos.

Dia do Combate à Intolerância Religiosa

Coincidentemente ou não, o Dia Mundial da Religião, 21 de janeiro, também é o Dia de Combate à Intolerância Religiosa. Foi nessa data, no ano de 2000, que morreu, de infarto, a iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, a “Mãe Gilda”. Três meses antes, um jornal ligado a uma igreja havia estampado em sua capa a foto dela, com a seguinte manchete: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. Logo depois, a casa de Mãe Gilda foi invadida por radicais, o marido da religiosa foi agredido física e moralmente, e o terreiro foi depredado. 

No Brasil, as religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, são as mais discriminadas. O preconceito, entretanto, não vem só dos radicais que atacam diretamente essas crenças. Vem, na verdade, da época em que os escravos chegaram ao país e tiveram que “esconder” seus orixás e cultos através de subterfúgios para conseguirem praticar suas religiões. Iansã virou Santa Bárbara, Ogum virou São Jorge, Oxum, Nossa Senhora da Conceição. Não foi só uma questão de sincretismo propriamente dito, mas sim uma forma de escapar das possíveis chibatadas daqueles que se consideravam donos de seus corpos e almas.

O preconceito velado ou não permaneceu. Ser “macumbeiro” sempre foi para muitos motivo de chacota, de discriminação. Os ritos da umbanda e candomblé geralmente são malvistos ou enxergados como “folclore”. Com isso, muitos umbandistas ou candomblecistas se declaram “católicos”, por exemplo. É mais fácil. É menos doloroso.

E aí chega um intelectual branco, diplomata bronzeado pelo sol de Ipanema, tomando seu uísque e compõe – e grava – Canto de Ossanha e Meu Pai Oxalá, e ainda aparece com guias no pescoço. Mas um intelectual branco, carioca exaltando o candomblé, com direito a cantar Tatamirô, em homenagem à Mãe Menininha do Gantois?

Nem Vinícius de Moraes com sua genialidade, Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Bethânia, Gilberto Gil e muitos outros grandes nomes da nossa MPB, conseguiram com suas músicas, evitar a radicalização contra as religiões vinda com os escravos. Nem os inúmeros sambas-enredos que encantaram a Sapucaí, nem a opinião de pensadores, professores, artistas de todas as áreas. Nem os religiosos a favor da paz entre as crenças. O fato é que a intolerância religiosa, expressada até em ataques físicos, tem aumentado em nosso país. Mas como isso vem acontecendo em boa parte do mundo – vide a prática violenta do Estado Islâmico – o grande número de denúncias recebidas pelos órgãos competentes acaba ficando em segundo plano, como se a destruição do Templo de Baal-Shamin, na Síria, pelo EI fosse muito mais chocante do que um templo de Umbanda no Rio de Janeiro, descontado aí, obviamente, o valor histórico, e se atendo ao fato de os dois terem sido arrasados por significarem para alguns local de “infiéis”. A morte de um umbandista, surrado por intolerantes, não tem o mesmo peso da decaptação de um ocidental pela faca de um radical mulçumano? 

Números que assustam

Em 2011, a Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal passou a receber denúncias de discriminação religiosa. As quinze queixas inicias, que chegaram via o Disque 100 – Disque Direitos Humanos – se transformaram em 556 em 2015. Ou seja, um crescimento de 3706% em cinco. Lembrando que muitos casos nem chegam a ser denunciado, por medo, descrença na Justiça, vergonha entre outros fatores. Por outro lado, o aumento de denúncias ao Disque 100, mostra que os cidadãos que sofrem este tipo (ou outros) de agressão, está muito mais consciente de seus direitos, o que é um bom sinal para o combate à intolerância de qualquer espécie.

O relatório da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, divulgado em janeiro de 2016, mostra que do total de denúncias recebidas, 71,15% são em relação a crimes contra as religiões de matriz africanas. Mas não apenas o candomblé e umbanda sofrem com a intolerância. De setembro a dezembro de 2015, 32% das denúncias foram prestadas por mulçumanos, 6% por indígenas, 5% por agnósticos, 3% por pagãos e também 3% por kardecistas.

O que diz a Constituição

Entre vários artigos, a Constituição Brasileira prevê o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que proíbe a discriminação religiosa no país. Todo cidadão tem direito a expressar a sua crença sem ser importurnado. Ninguém deve ser criticado por expressar a sua fé, seja através de rituais ou da liberdade de expressão. No entanto, a lei prevê que a manifestação da fé não deve comprometer a ordem, a segurança e o bem-estar da comunidade. A liberdade de culto e credo deve, portanto, estar sujeita a limitações previstas na Constituição. Em um de seus artigos, garante-se a liberdade de crença e consciência aos cultos de origem africana, com suas celebrações características. Confira  a seguir o que garante a lei em vigor no Brasil.    

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5º, inciso VI, preceitua que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos veda, em seu artigo 2º, primeiro parágrafo, a discriminação por motivo de religião. Mais adiante, no art. 18, preceitua:

“ARTIGO 18
Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.

Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha.

A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas a limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.

Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos países e, quando for o caso, dos tutores legais de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções.”

Oportuno frisar que a Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), buscando proteger cultos religiosos de matriz africana, tidos como aqueles que estão entre os mais discriminados no Brasil, estatui, em seus arts. 24 e 26:

Art. 24. O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende:

a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins;
a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das respectivas religiões;
a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas;
a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação específica;
a produção e a divulgação de publicações relacionadas ao exercício e à difusão das religiões de matriz africana;
a coleta de contribuições financeiras de pessoas naturais e jurídicas de natureza privada para a manutenção das atividades religiosas e sociais das respectivas religiões;
o acesso aos órgãos e aos meios de comunicação para divulgação das respectivas religiões;
a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em quaisquer outros locais. (...)

Art. 26. O poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de: coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas;

inventariar, restaurar e proteger os documentos, obras e outros bens de valor artístico e cultural, os monumentos, mananciais, flora e sítios arqueológicos vinculados às religiões de matrizes africanas;
assegurar a participação proporcional de representantes das religiões de matrizes africanas, ao lado da representação das demais religiões, em comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público;

Todas as pessoas e suas respectivas religiões merecem proteção e respeito. Mencionamos dispositivos de lei que se referem propriamente a cultos de matriz africana apenas a título de ilustração, para indicar a preocupação do legislador em resguardar as liberdades de cada indivíduo, inclusive com relação a diferenças humanas de consciência e de crença, e em combater a disseminação do ódio entre as pessoas, fundado em intolerância religiosa. 

Convém anotar que a Lei nº 11.635/07 instituiu o dia 21 de janeiro como o “Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa”.

Não se pode olvidar, outrossim, que o Brasil deve adotar uma postura neutra no campo religioso, de sorte a não apoiar ou discriminar nenhuma religião.

Com efeito, em consonância com a Constituição da República Federativa do Brasil e com toda a legislação que asseguram a liberdade de crença religiosa às pessoas, além de proteção e respeito às manifestações religiosas, a laicidade do Estado deve ser buscada, afastando a possibilidade de interferência de correntes religiosas em matérias sociais, políticas, culturais, etc.

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TAGS: intolerância religiosa | religião
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