Ilona Szabó: “Os prefeitos têm tudo a ver com segurança pública”

Friburguense é hoje uma das maiores autoridades internacionais em combate à violência
sexta-feira, 30 de setembro de 2016
por Márcio Madeira
(Foto: Henrique Pinheiro)
(Foto: Henrique Pinheiro)

A VOZ DA SERRA teve a oportunidade de conversar longamente no último dia dia 21 de setembro com Ilona Szabó de Carvalho, a friburguense que já se consolidou como uma das principais lideranças da juventude internacional, sobretudo em matérias relacionadas a segurança pública e à redução da violência. Aproveitando a oportunidade das eleições municipais, Ilona enfatizou, a partir de sua vasta experiência, a importância do papel — tantas vezes ignorado — da administração municipal na construção de uma sociedade mais segura.

A VOZ DA SERRA: Você ainda não chegou aos 40 anos, mas já conhece aproximadamente 50 países e acumula uma experiência de vida muito rica, especialmente graças ao contato com outras culturas. O que essa experiência, seus estudos e suas linhas de pesquisa te ensinaram com relação a políticas públicas de redução de violência? Noutras palavras: o que você mudaria, se tivesse o poder para formular a política brasileira de combate à violência?
Ilona Szabó: Em primeiro lugar, no Brasil como um todo, não apenas na área de segurança e redução de violência, a gente precisa fazer políticas públicas que sejam baseadas em informações, que sejam monitoradas, avaliadas, e eventualmente modificadas ao longo do trajeto. Nós temos deliberado sobre políticas públicas sem saber qual tem sido o impacto delas. Essa é a primeira questão que precisa ser modificada em todas as áreas: entender se na verdade nós estamos acertando ou errando, porque muitas vezes boas intenções não bastam para garantir que os resultados colhidos serão aqueles planejados. Em segundo lugar, quando falamos de segurança no Brasil, nos deparamos com um problema sério, e esse me parece ser o momento certo para falar sobre isso. Há um entendimento equivocado de que segurança pública é igual a polícia. Esse entendimento prejudica totalmente as ações de planejamento junto aos três entes federativos. Explico: muitas vezes o prefeito acha que não tem nada a ver com segurança, quando na verdade o prefeito tem tudo a ver com segurança. Toda a área de prevenção da violência — que é mais barata, mais humana, muito mais eficaz — está nas mãos dos prefeitos. Não está nas mãos do governador — que também pode fazer suas políticas sociais, indo além de comandar a polícia. Mas a política pública focalizada na área social, que a gente sabe que tem resultados na prevenção, os prefeitos podem implementar. Eu entendo que seja oportuno explorar a agenda municipal, mas a mesma coisa se passa no nível federal. O discurso presidencial padrão é o de que a atuação federal é muito limitada no que diz respeito a segurança, quem tem o poder é o governador. Novamente, essa interpretação é equivocada, uma vez que o governo federal tem o dever de ser o indutor de políticas públicas positivas, baseadas em evidências, em experiências que funcionaram ou não funcionaram, aqui ou fora daqui. E também é o governo federal quem tem a capacidade para dar os incentivos corretos aos estados que queiram experimentar, inovar, construir novos modelos, bem como aplicar desestímulos aos estados que não queiram fazer essa transformação. E por que é necessário passar por essa transformação? Porque nós não fizemos a passagem da segurança pública, da ditadura para a democracia.

E como deveria ser essa passagem, em sua opinião?
Temos um modelo policial baseado num inimigo. As polícias trabalham contra alguém, e esse alguém chama-se população. Obviamente que dentro desta população há públicos que sofrem muito mais do que outros. Mas toda a doutrina, todo o treinamento, todo o modelo das polícias segue essa linha. Não apenas a PM, como muitos pensam. Aliás, fala-se muito sobre a desmilitarização da polícia, mas isso não vai resolver. É fato que há uma supermilitarização, mas a Polícia Civil também é muito militarizada. Nós não vamos resolver a situação através de pequenas reformas, a gente precisa na verdade pensar num novo modelo policial. Existe essa conversa, mas não há vontade política porque existe uma questão corporativa. Então, é preciso discutir o nível federativo das responsabilidades; ao menos ter a chance de conversar sobre um novo modelo policial; enfatizar o levantamento de informações e dados que são cruciais para a segurança pública. Já temos aí três pontos importantes, mas eu poderia listar e aprofundar cinco frentes principais, entre as muitas que poderíamos abordar.

Quais são as outras?
O quarto ponto gera um impacto imenso no sistema penitenciário, porque acredita que segurança é resultado de mais polícia e mais prisões. Nos lugares em que vimos a virada do jogo encontramos menos polícia, focalizada nos locais onde existem manchas criminais, ou seja: onde são observados grupos, comportamentos e locais mais vulneráveis à violência. Então se trata de usar o recurso humano policial de forma muito mais inteligente, e também para dissuasão, não só através de incursão repressiva. Hoje nós usamos mal a polícia, e usamos mal as penas. Existe a crença de que através do aumento das penas se vai conseguir dissuadir crimes. A gente não tem visto isso na prática. Na verdade, se alguém matou alguém no Brasil, essa pessoa pode responder em liberdade, e em inúmeros casos pega penas muito mais leves do que alguém que roubou um saco de batatas porque o filho estava com fome. Dependendo da interpretação do juiz, as leis de tráfego de drogas ou roubo podem ser mais severas do que em casos de crimes contra a vida. Então a gente tem uma crise no sistema carcerário, e é insustentável achar que a gente vai ter a estrutura que seria necessária para prender todo mundo que teria que ser preso hoje — a gente tem mais de 250 mil mandados de prisão em aberto, temos a terceira maior população carcerária do mundo, já estouramos todas as violações dos direitos humanos possíveis. Esse é um ponto que precisa ser discutido: que sociedade a gente quer no nível de punição? Até porque a educação é muito mais eficaz do que a punição.

E o quinto ponto?
O quinto ponto é a reforma da política sobre drogas. Eu tenho me dedicado a isso há anos, porque é um nó, é um tabu, e dialoga diretamente com todos os outros pontos. O modelo policial é o que é atualmente porque se tem como justifica uma guerra às drogas, na qual pode tudo. Enquanto na verdade a gente vê que o que existe é uma guerra contra pessoas, em especial pessoas de cor, pessoas pobres. Então existem distorções aí, existem distorções no sistema carcerário por causa desta política, existem distorções em juventude, em cultura, em saúde... Todos esses pontos compõem uma agenda prioritária de segurança pública, e obviamente cada ponto desses tem subpontos, mas o mais importante é dizer que hoje a gente sabe, temos toda a capacidade para comprovar que é muito mais barato prevenir e educar do que prender. Por isso a ideia de que não temos capacidade orçamentária para reformar a segurança pública não é verdadeira. A gente só precisa fazer algumas escolhas diferentes, e apostar que nós podemos ter uma sociedade que seja muito mais autorregulada e regulada mutuamente, do que uma sociedade que precisa ser oprimida ou também apadrinhada, uma vez que observamos uma diferença na aplicação da lei. Aliás, estamos vivendo um momento chave no Brasil para sabermos se a lei de fato vai valer para todos. E de novo, não há estrutura para se prender todo mundo. É preciso alterar a legislação, inclusive no que diz respeito a drogas, para acabar com o excesso de prisões. Os chamados réus primários não-violentos, presos de pequeno potencial ofensivo. Não se trata jamais de defender a impunidade, mas ter em mente que a prisão é a última gradação, da mesma forma como atirar é a última opção. Acontece que a gente sempre usa essas duas opções como as primeiras, mas o fato é que existem medidas alternativas à prisão que são muito mais restaurativas e educativas, como também é importante observar que o uso da força no Brasil não é progressivo. Já se começa pelo fim. Esses dois pilares precisam ser mudados.

Você disse que gostaria de aprofundar a agenda que cabe aos prefeitos...
Sim, tenho uma agenda municipal de segurança cidadã, que pretende mostrar aos prefeitos que eles têm tudo a ver com segurança. Fiz inclusive uma publicação com dez casos de políticas públicas de nível local que fizeram diferença no quadro de violência, até mesmo no Brasil. E o que observo, como fatores importantes para que as políticas sejam bem sucedidas? O primeiro ponto é uma liderança continuada. Conseguir que a população também se aproprie das políticas, para que a cada novo governo não ocorra toda a troca de programa. É preciso que a comunidade “compre essa briga”, no bom sentido, para que haja uma continuidade. Porque no Brasil várias vezes consegue-se alguma redução, alguma melhora através de alguma política, mas ela é abandonada porque já rendeu o que deveria render, e dessa forma não se sustentam os resultados, nem tampouco se atinge o nível de excelência em qualquer área.

No seu entendimento, esse é um processo que se inicia através do poder público, ou da sociedade civil se organizando?
Isso só acontece quando a sociedade entende que tem esse papel de cobrar. Onde eu mais vejo que isso deu certo foi na Colômbia. Se nós olharmos para o que os prefeitos de Bogotá, Medellín e Cáli fizeram — e a gente está falando de quatro ou cinco gestões já —, as políticas que dão certo não mudam. Muda o grupo político de A a Z, mas as políticas não mudam porque a sociedade é muito mais politizada no nível da discussão. Sabe o que é prioridade, exige, entende na verdade que o político nada mais é do que o representante de seus interesses, e se aquela é uma prioridade, então ele precisa cumprir. E também é preciso entender que o governo não é o provedor de tudo, porque a cidadania é absolutamente fundamental. Em países como a Suécia ou o Canadá, se você não tomar conta da sua praça, da sua biblioteca, da sua escola... As pessoas são voluntárias, se envolvem nas questões, elas dão seu tempo livre para a realização de programas com crianças. Aqui no Brasil encontramos o voluntariado muito mais presente nas classes menos favorecidas do que entre as pessoas que têm mais condições de doar tempo, recursos e conhecimentos. Eu acredito que ou a gente aprende o que é dever cívico e para de achar que só temos direitos — nós também temos muitos deveres — ou a gente não vai nunca exercer o potencial que o Brasil tem.

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