Idas e vindas de um lumiarense

quarta-feira, 31 de dezembro de 1969
por Jornal A Voz da Serra
Idas e vindas de um lumiarense
Idas e vindas de um lumiarense

Maurício Siaines
José Maria Spitz é um cidadão nascido em Lumiar, em 1929. Não é difícil atualmente encontrá-lo, especialmente em torno das 8h, horário em que chegam os jornais à localidade. Embora afeito à sua terra natal, esteve afastado dela desde os 11 anos de idade. Estudou Direito em Niterói e teve diferentes trabalhos nessa área. Depois da aposentadoria, no final dos anos 1990, voltou a se estabelecer em Lumiar, onde passou a se dedicar a coisas de que sempre gostou mas a que nunca pôde se entregar por inteiro. Uma delas foi a literatura. Outra, foi a pintura: atualmente pinta quadros, distribuídos em paredes de sua casa.
 Torcedor do Botafogo, ao se reinstalar em Lumiar, plantou uma bandeira do clube em seu quintal, visível pelo passante atento. Deu entrevista para A VOZ DA SERRA, em sua casa, no último domingo, 4 de novembro, falando de suas idas e vindas pelo estado do Rio de Janeiro e de outras experiências. Abaixo, trechos dessa conversa. 

A VOZ DA SERRA – Como foi sua carreira como operador do Direito?
José Maria Spitz – Formei-me em Direito em 1954, em Niterói. Como não tinha o respaldo social para progredir na advocacia fui fazer concursos. Inicialmente para delegado, depois para juiz substituto.

AVS –  Onde o senhor foi delegado?
José Maria Spitz – Em Cordeiro, uns dois anos, e em Nova Iguaçu, uns três anos. Fiquei cerca de cinco anos como delegado. Depois de outro concurso, fui nomeado juiz substituto e estive quatro ou cinco anos em São Sebastião do Alto. Nessa época, morava em Niterói. Mais tarde fui para Araruama. Mas não me adaptei. E aí houve um concurso para procurador do estado, passei e fui nomeado procurador em Niterói. Com a fusão [dos antigos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara], em 1974, foram criadas as procuradorias regionais. Como era friburguense e queria mudar-me para Friburgo, consegui ser nomeado chefe da procuradoria regional de Friburgo e fiquei muitos anos. Mudei-me com a família para Friburgo.

AVS – Nas outras funções que o senhor desempenhou a família não o acompanhava?
José Maria Spitz – Nunca havia uma comarca fixa e eu era removido de uma para outra. A família morava em Niterói e eu viajava de ônibus. Minha esposa era professora em Niterói e conseguiu [também] ser removida para Nova Friburgo. Trouxe, então, a família porque pretendia ficar em Friburgo. E era preciso residir em Friburgo que é o centro de 11 comarcas, que impunham obrigações regionais, todos os inventários, por exemplo, tinham que passar pelo procurador e se ele não fosse para lá, o processo pararia. Fiquei, então, na chefia da procuradoria até me aposentar. Aposentado, vim para Lumiar, construí [minha casa] e vim morar aqui, onde já estou há uns 15 anos. E hoje é viver e explorar o que fiz anteriormente.

AVS – Como foi sua saída de Lumiar?
José Maria Spitz – Nasci aqui e na época só havia escola até terceira série primária. Fui, então, com 11 anos [em 1940], para a casa de uma tia, em Niterói, para poder entrar no ginásio. Meu tio tinha uma farmácia e fui ajudá-lo e cursar o ginásio no Colégio Figueiredo Costa, em Santa Rosa. Meu pai, que tinha comércio aqui em Lumiar, mudou-se para Friburgo, e minha mãe, que era professora, também se transferiu para lá. Voltei, então, para Friburgo e terminei o ginásio no Colégio Modelo. Terminando o ginásio, voltei para Niterói para poder fazer o científico [atual nível médio] e o vestibular.

AVS – Então, seu contato pessoal direto com Lumiar foi relativamente pequeno.
José Maria Spitz – Foi pequeno, até meus dez anos. O contato está sendo maior agora. Meu pai, nascido aqui, só saiu aos 50 anos. Minha mãe, também, ambos nasceram aqui.

AVS – E o senhor saiu de Lumiar para poder trabalhar.
José Maria Spitz – Minha vida como advogado não podia ser em Lumiar, os concursos eram feitos em Niterói [então capital do estado]. Não estar lá seria perder a chance de concurso. Naquela época ia-se de Friburgo a Niterói de trem, havia dois horários por dia. E daqui de Lumiar, na minha infância, ia-se a cavalo até Mury, para pegar o trem para Friburgo ou para Niterói. A vida era completamente diferente do que é hoje, Lumiar não tinha luz... certos confortos não havia aqui. Então, era preciso sair daqui. Para ficar era preciso ser lavrador, ou comerciante... era preciso ter uma coisa própria. Para quem estava querendo começar a vida, era preciso ir embora.

AVS – E o que o fez voltar?
José Maria Spitz – Quando a gente se aposenta, morando em apartamento, a vida se torna cansativa. Aqui, a gente não vem somente para morar, vem para viver. Se fosse só para morar, teria ficado na cidade. Mas cada família teve um caminho para seguir.
Meu pai tinha um armazém e as mercadorias vinham em lombo de burros, em tropas, que levavam três dias [para ir a Friburgo e voltar], no primeiro dia, iam até próximo a Mury, no rancho, onde pernoitavam. No dia seguinte, iam a Friburgo e voltavam, retornando a Lumiar no terceiro dia. A vida era muito diferente.

AVS – Alcides Heiderich, conhecido como Cidinho, foi seu contemporâneo. Em sua vida, caminhos diferentes o levaram a deixar o mundo agrícola e tornar-se professor. Era também uma busca, assim como houve diversas outras, não é?
José Maria Spitz – Cidinho ainda tinha outra virtude: se estivesse em um grande centro, teria sido um grande ator. Ele se destacava nos teatros organizados nos colégios, tinha uma facilidade tremenda para isso. Ter sido professor vinha do fato de ele gostar de se comunicar e transferir conhecimento. Cidinho foi muito útil a Lumiar, tinha uma facilidade tremenda de aprender. Se tivesse saído daqui, teria um horizonte muito maior, mas ele não teve a chance. Eu saí porque tive essa chance: por acaso, um tio comprou farmácia em Niterói, me ofereceu lugar para ficar... essa oportunidade ele não teve. Se tivesse, teria aproveitado. Aí, entrou um pouco de sorte em minha vida e, já que havia começado, continuei, não havia mais como voltar.

AVS – A banda da Sociedade Musical Euterpe Lumiarense era importante na vida social, não é?
José Maria Spitz – Essa banda é muito antiga. Quando era garoto, com cerca de nove anos, cheguei a começar a tocar pistão. Mas me aconselharam a parar porque o instrumento exigia que se fizesse muita força. O então presidente da banda era meu avô, Gustavo Brust. O maestro da época era  seu Dudu, que entendia muito de música. Meu pai tocava na banda. Havia a banda dos adultos e começaram a formar a banda infantil. Eu fui embora, mas alguns continuaram. Todos os músicos eram locais, todo mundo fazia parte da banda porque não havia outra coisa a fazer aqui. Era importante ir para a banda e aprender a tocar um instrumento. A banda participava de festas em São Pedro da Serra e em outros lugares.
Naquele época, havia todo ano a festa do local, acho que era em outubro, fazia-se em uma época em que chovia menos. Em todo ano havia um festeiro e meu pai foi festeiro várias vezes. Era quem acertava toda a estrutura para a festa, as barraquinhas, a banda. E naquele dia da festa, vinha o padre, a cavalo. Esse padre, monsenhor José Teixeira, foi meu padrinho de crisma. Uma vez, quando o padre vinha já perto de Lumiar, soltaram um foguete e o cavalo se espantou e derrubou o padre. Estabeleceu-se, então a regra, a partir daí, que só se podia soltar fogos depois que o padre apeasse do cavalo. O foguete, que se ouvia longe, era para avisar que o padre tinha chegado. E aí, pessoas traziam filhos para serem batizados, faziam-se casamentos. As festas duravam três dias, sexta-feira, sábado e domingo. Até os 10 anos participei disso.

AVS – A religião era outro elemento de organização da vida, não é?
José Maria Spitz – A religião era fundamental. Já estavam também aqui os luteranos. Meu avô materno era luterano e o paterno era católico, as famílias conviviam e se entrosavam. Era normal casamentos entre católicos e protestantes. Como a religião católica era mais sociável, quando um dos pais era católico, os filhos optavam mais pelo catolicismo. A religião protestante prendia mais as pessoas e a juventude quer liberdade. 

AVS – E a política, que influência tinha?
José Maria Spitz – Havia influência dos nomes dos políticos da época. Tive um parente que era Getúlio Vargas Spitz. O Juscelino, [hoje] do Correio, tem esse nome por causa do Juscelino Kubitscheck. O pessoal de Lumiar, naquela época, era PSD (Partido Social Democrata) e São Pedro da Serra era UDN (União Democrática Nacional). A sorte de Lumiar é que o PSD mandou muitos anos e assim algum progresso veio para cá, como o cartório, os Correios. 
Há coisas aqui que hoje ficam sem explicação. Por exemplo, o Vale dos Peões. Esse nome se deve ao fato de, antigamente, amansarem-se animais ali. Seu João era o peão de Lumiar, ele amansava animais e morava naquele lugar que hoje é o Vale dos Peões. O Poço Feio: no nosso tempo, “feio” significava perigoso. “Não vai lá porque é feio”, dizia-se para as crianças. O rio ali é mais caudaloso, os garotos queriam ir tomar banho de rio, mas lá não podia. Era bonito, mas era perigoso. 
Os nomes aqui são todos portugueses: Lumiar é bairro de Lisboa, São Pedro, Boa Esperança, Benfica são nomes portugueses. Porque estas terras faziam parte de sesmaria doada a um português. Não consegui saber o nome dessa pessoa. Anos depois, veio a colonização alemã e suíça.
Havia por aqui a lenda do Mão de Luva, que, por problemas familiares teria fugido [de Portugal] para o Brasil. E ele teria escondido um tesouro aqui na Pedra Riscada. O caminho para Casimiro de Abreu era por aqui. O próprio Casimiro de Abreu, que estudou no Colégio Anchieta, em Friburgo, dormia em Lumiar quando vinha da [atual] Casimiro. Era o caminho mais curto para a baixada. São pequenos detalhes que são desconhecidos por quem vem hoje para cá. 
Há 80 anos, sabia-se dessas coisas porque não havia outro papo, a conversa era aquela, hoje a conversa é sobre televisão. Em qualquer encontro familiar, o papo era o mesmo. Era pequeno o número de famílias e muito parentesco entre elas. Eu, por exemplo, participava de diversas famílias, por parte de pai, de mãe, dos avós. Por parte de mãe era Brust, Klein e Heringer. Por parte de pai era Spitz e Berbert. Era comum haver casamentos entre primos, porque não se podia fugir, nascia-se, vivia-se e morria-se aqui e o casamento só podia acontecer entre pessoas locais. Eu fui embora e minha esposa é de Niterói, mas se ficasse, teria casado aqui, não havia como ser diferente.

AVS – Ainda falando dessa questão de ir embora: na mesma época em que o senhor saiu daqui, algumas famílias daqui se transferiram para o Paraná; acompanhavam a lavoura do café que se deslocava naquele sentido, não é?
José Maria Spitz – Muita gente foi para o Paraná por causa do café. Para quem trabalhava na agricultura, era o que dava mais dinheiro. Muitos dos que foram para o Paraná ficaram por lá, outros voltaram, com situação financeira melhor, para comprar propriedades aqui e se reinstalar. 

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS:
Publicidade