Dalva Ventura
A Medicina é, realmente, uma profissão diferenciada de todas as demais. Além de muito estudo e dedicação, exige, de quem a pratica, certas qualidades raras, como a compaixão, a paciência e a capacidade de se colocar no lugar daqueles que necessitam de seu auxílio. Além de diagnosticar doenças e apontar possíveis soluções para as mesmas, os bons médicos exercem a Medicina como uma espécie de apostolado, fazem questão de esclarecer todas as dúvidas de seus pacientes e sempre tentam tranquilizá-los nos momentos mais críticos.
Com esta matéria, A VOZ DA SERRA homenageia a todos os médicos que se dedicam a sua profissão desta maneira e, mesmo sob sacrifício pessoal, sempre exercem a Medicina pensando em minimizar o sofrimento alheio. Para tanto, entrevistamos três deles, os doutores Santo Lo Bianco, Renato Henrique Gomes da Silva e Othon Luiz Souza de Morais. Além destes, ouvimos também o doutor Chamberlain Noé, um dos grandes médicos friburguenses que apesar de não estar mais exercendo a Medicina, até hoje é citado por seus colegas como o decano dos médicos de Nova Friburgo.
Santo Lo Bianco:
“Medicina é uma coisa muito séria”
Ele chega ao posto de saúde, o Sylvio Henrique Braune, pontualmente, às 6h45 e só sai por volta de 11h. Já poderia pedir sua aposentadoria, mas vai ficando porque sente pena daquelas pessoas que “passam a noite inteira acordadas, no frio, para conseguir uma ficha e ser atendidas”. Santo diz que apenas pensa no caso já que se sente em plenas condições de trabalho. Vai continuar trabalhando, pois se sentiria mal em deixar a população carente e continuar atendendo em seu consultório particular.
Convenhamos. Poucos, muito poucos, agiriam desta maneira. Mas quem conhece o gastroenterologista Santo Lo Bianco sabe que ele é assim mesmo. Difícil encontrar um médico mais dedicado que ele e também mais educado e paciente. “A realidade daquelas pessoas é muito triste e eu, que atendo lá todos os dias, absorvo muito isso, as dificuldades, o sofrimento delas. Quem se propõe a chegar num posto de saúde às 22h, 23h, para ser atendido às sete da manhã se não estiver sofrendo?”
Então, ele faz questão de atender a cada uma destas pessoas na maior calma, como se estivesse no consultório particular. “Isso eu aprendi com meu professor, o doutor Luiz João Abraão”, catedrático de Gastroenterologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde se formou e se especializou. “Medicina é uma coisa muito séria, você tem que se dedicar, tem que ouvir seu paciente, conversar com ele”, diz, destacando que muitas doenças estão relacionadas à esfera psicossomática e se “você não der atenção ao paciente ele não melhora”.
Santo diz que o médico tem uma profissão diferenciada de todas as demais. “Não é como um arquiteto, um engenheiro ou um jornalista, por exemplo, pois lidamos diretamente com o sofrimento, o sentimento do ser humano, enfim. Na formatura, a gente faz aquele juramento [de Hipócrates, considerado “o pai da Medicina”], e não deveria ser da boca para fora. Nesta profissão, ou você faz certo ou você não faz, não tem meio termo”, acredita.
Ainda bem que sua mulher, Auxiliadora, sua atendente no consultório, é muito compreensiva, pois a rotina do marido é para lá de puxada e a vida social e familiar do casal fica muito comprometida. “Como estamos casados há muito tempo, ela já sabe como é, mas no início da vida de casados, com as crianças pequenas, era complicado mesmo”, diz, afirmando que hoje consegue curtir mais a netinha Rafaela do que curtiu os filhos, quando crianças. “Mas estou satisfeito, me sinto realizado, porque faço o que eu gosto”.
Renato Henrique Gomes da Silva:
“O tecnicismo não pode jamais substituir o humanismo”
“Friburguense coroado do tempo que o Paissandu era quadrado”. Assim se define Renato Henrique Gomes da Silva, uma referência em cirurgia bucomaxilofacial não só na cidade, mas na região. Como a maioria de seus colegas, a rotina diária do doutor Renato Henrique é muito puxada. Das 7h às 14h, cirurgia nos hospitais Unimed, Raul Sertã, São Lucas ou atende no ambulatório do posto de saúde (Sylvio Henrique Braune). Três vezes na semana, consultório à tarde. Além disso, visita diariamente os doentes internados. E não é só: sete dias por mês, inclusive fins de semana e feriados, fica de sobreaviso, alcançável para atendimento emergencial.
Renato Henrique faz questão de esclarecer que não se queixa da vida que leva, muito pelo contrário. Destaca, porém, que o ideal para o exercício da medicina seria “a dedicação exclusiva a uma única instituição, com remuneração digna e respeitosa”. E se diz feliz, “pois conseguiu realizar seu sonho, antes muito distante, de ajudar ao próximo como profissional da saúde”, diz.
De família simples, Renato Henrique começou a trabalhar aos 14 anos, como ajustador mecânico no Senai e depois, mecânico da fiação na Fábrica de Rendas Arp. Não teve maiores dificuldades para ingressar no curso de Odontologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, mas para se sustentar, trabalhava no Instituto Vital Brazil. Dois anos depois de formado, iniciou o mestrado em Cirurgia Bucomaxilofacial, também na UFF. No desenrolar de sua atividade como dentista, foi sentindo uma necessidade cada vez maior de ir além. Resolveu, então, fazer Medicina, especializando-se em cirurgias da cabeça e pescoço no Instituto Nacional do Câncer (Inca). Ao mesmo tempo, ingressou, por concurso, no Hospital da Policia Militar do Rio de Janeiro, como oficial médico e no Hospital Universitário Antonio Pedro, como professor, já tendo se aposentado destas atividades.
“Aí dei um tempo para mim, para minha família, criei minhas filhas, mas depois de alguns anos, comecei a sentir aquela cosquinha e resolvi fazer o doutorado”, diz. Foram cinco anos indo e voltando toda semana para Araçatuba, no interior de São Paulo. O resultado foi uma tese de doutorado saudada pela comunidade científica como uma importante contribuição à medicina.
Ele se preocupa com a alta tecnologia que cerca o exercício da medicina na atualidade, pois as máquinas estão distanciando os pacientes dos médicos. “O tecnicismo não pode jamais substituir o humanismo. Nada substitui a atuação do médico no clímax da doença, à cabeceira do leito, na sala de cirurgia, no microscópio, no laudo técnico. De nada servem o conhecimento, os títulos exibidos pelo profissional se sua ação, seu trabalho não vier repleto de sentimento humanístico e ético”, afirma.
“Neste Dia do Médico, a mensagem que eu gostaria de passar aos meus colegas de profissão, sobretudo os mais jovens, é que não deixem jamais de manter um relacionamento profundamente afetuoso com seus doentes, pois isso certamente diminui seu sofrimento e abrevia sua cura”.
Gustavo Ventura Couto:
“Uma cirurgia cardíaca sempre representa um baque muito grande”
O médico Gustavo Ventura Couto voltou para Nova Friburgo, sua terra natal, há 13 anos, com um desafio pela frente: implantar o Serviço de Cirurgia Cardíaca do Hospital São Lucas. Com sua competência e seriedade, Gustavo conseguiu, em curtíssimo espaço de tempo, torná-lo um centro de referência em sua especialidade, respeitado e reconhecido entre os dez melhores do Estado.
De lá para cá, quase quatro mil pacientes já foram operados do coração no São Lucas, cerca de 700 receberam marca-passos cardíacos definitivos e foram realizados milhares de procedimentos pelo Serviço de Hemodinâmica, também sob sua supervisão. Além da alta complexidade dos atendimentos, o mais importante, ressalta, é que 91,3% dos pacientes são provenientes do SUS. Outro motivo de orgulho, diz, é a abrangência do serviço, que atende a nada menos que 15 municípios.
Mas quando se trata do doutor Gustavo fica difícil falar de orgulho. Ele é a mais simples, modesta e doce criatura que se possa imaginar. Outro traço de sua personalidade é a dedicação e o carinho com que trata a todos que o procuram, o que o ocorre sempre num momento crucial de suas vidas.
“Uma cirurgia cardíaca ou mesmo um cateterismo sempre representam um baque muito grande. Pode reparar que quem opera o coração parece ficar meio deprimido depois do entusiasmo inicial, por estar vivo. Mas o que acontece não é bem uma depressão. Eu diria que é uma fase de reflexão. Estas pessoas pensam: bem, eu quase morri. E agora? Será que vou conseguir mudar? Parar de fumar? Emagrecer? Tudo isso mexe muito, é muito angustiante.”
Gustavo formou-se pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1981 e desde o 4º ano de faculdade já tinha definido sua especialidade. Estagiou e fez o internato com o renomado cirurgião Waldir Jazbik e a residência com outro Jasbik, o não menos renomado, Antônio. Depois disso, trabalhou durante três anos no Hospital de Aeronáutica da Ilha do Governador, no Rio, mas a convite de outro membro da famosa família Jasbik, João Jasbik, foi parar em Campo Grande (MS), onde passou 12 anos. Depois de uma breve passagem por Cuiabá (MS), acabou entrando em negociações com o Hospital São Lucas, que estava prestes a inaugurar o serviço de cirurgia cardíaca.
Sorte nossa. Uma tranquilidade dispor de um serviço deste porte, que ostenta índices de eficiência e segurança tão expressivos, e que tem à frente um médico como o doutor Gustavo Ventura Couto. “Divido todos os resultados, agradecimentos e honrarias com a equipe incrível que consegui reunir e com quem realizo diariamente meu trabalho”, diz. Modesto, como sempre.
Othon Luiz Souza de Morais:
“Médico que fica rico é mais empresário que médico”
Desde que se formou, ele sempre trabalhou em clínicas particulares como ultrassonografista, mas não se conformava com o preço cobrado pelo exame. “Acho o exame muito caro, pois o custo operacional não é alto. O equipamento é, mas mesmo assim, é possível cobrar um preço mais acessível”, diz. Então, assim que pôde, o que levou anos para acontecer, abriu sua própria clínica, em frente à maternidade municipal, onde realiza o exame a preços populares
O médico ressalta a importância deste exame, principalmente em certas situações, como uma gravidez de risco ou para definir alguns diagnósticos e garante que é possível realizá-lo por um custo que mesmo quem não tem convênios de saúde, quase sempre tem condições de pagar. “Aqui, a ordem é não deixar ninguém sem fazer o exame que necessita”, diz.
“Abrimos a clínica há pouco mais de dois anos e não temos do que reclamar. Faço de 25 a 30 exames por dia. Não fiquei rico, mas estou realizado. Meu sonho nunca foi enriquecer. Para mim médico que fica rico é mais empresário que médico.”
Nascido em São Gonçalo, de família humilde, Othon enfrentou muitas dificuldades até se formar e por pouco não abandonou o sonho acalentado desde a infância, de se tornar médico. Chegou a fazer duas faculdades, Primeiro, economia, que logo viu não ter nada com ele. Depois, Química Industrial. Até que decidiu encarar. Já com 29 anos, começou a cursar Medicina, na Universidade Federal Fluminense (UFF).
“Foi muito complicado. Se não fosse minha família, que me ajudava como podia, eu não teria conseguido. Tinha casado dois meses antes de ingressar na faculdade, minha esposa ficou grávida de meu filho mais velho, eu fui trabalhar à noite no Inamps, atendendo telefonemas, para poder fazer a faculdade de dia.”
Quando terminou a faculdade, fez residência em ginecologia e obstetrícia, também na UFF, mas já de olho na ultrassonografia. O aparelho estava começando a engrenar, mas Othon chegou a pegar a época em que a imagem parecia mais com uma mancha e ainda não havia sequer cabo para realização do exame transvaginal. Veio para Nova Friburgo em 97, convidado por um radiologista e não saiu mais. Trabalhou na Clínica Radiológica durante 12 anos, depois passou cerca de um ano no Centro de Imagem e Diagnóstico até abrir sua própria clínica, motivo de muito orgulho e satisfação, pois assim pode trabalhar para quem precisa. “Quer coisa melhor?”, pergunta.
Chamberlain Noé:
“Quem exerce a Medicina pensando apenas em ganhar dinheiro não é um bom médico”
Até pouco tempo, o doutor Chamberlain Noé ainda atendia os pacientes diariamente em seu consultório, que ficava no final da praça, em cima da Farmácia Esperança. Além disso, em todas as manhãs dava expediente no Hospital São Lucas, onde era diretor médico. Mas há dois anos sofreu um acidente vascular cerebral e desde então ficou impossibilitado de continuar exercendo sua grande paixão, a medicina, e de continuar indo, diariamente ao hospital que ajudou a fundar, nos idos da década de 60.
Com 82 anos, doutor Chamberlain é uma espécie de guru dos médicos da cidade, o último dos grandes clínicos que a cidade já teve, da estirpe dos doutores Dermeval Barbosa Moreira, Amâncio Azevedo e Waldir Costa. Nascido em Ponte de Itabapoana, uma pequena cidade do Espírito Santo, Chamberlain Noé faz questão de se declarar cidadão friburguense, título que lhe foi outorgado pela Câmara, e do qual muito se orgulha. Veio para cá ainda menino, com pouco mais de dez anos, quando seu irmão Nicolau, que era médico legista, veio trabalhar aqui e trouxe toda a família.
Apesar da origem humilde, seus pais valorizavam o estudo e não mediram esforços para que os filhos tivessem uma boa formação. Chamberlain fez o ginásio no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, onde se preparou para o exame na Faculdade Nacional de Medicina, onde se formou em 1952, aos 23 anos. A decisão de se tornar médico foi, obviamente, influenciada pelo irmão mais velho, porém ele conta que desde pequeno gostava de ler os livros médicos que este tinha na estante. Acabou tomando gosto pela Medicina e garante que em nenhum momento pensou em ser outra coisa na vida.
Depois de formado, fez o curso de pós-graduação em Clínica Médica e Anestesia no Hospital Getúlio Vargas, também no Rio e foi nestas especialidades que se destacou. Voltou em seguida para Nova Friburgo, onde exerceu sua profissão durante quase seis décadas.
Até hoje seus olhos brilham quando fala do Hospital São Lucas, que ajudou a fundar há 46 anos, um projeto sonhado desde os tempos em que ainda estava na faculdade. Ele conta que quando chegou a Nova Friburgo, logo depois de formado, havia grande falta de leitos hospitalares na cidade. Sentindo que o problema se agravava, junto com os médicos Dermeval Barbosa Moreira, Waldir Costa e outros, decidiram montar uma casa de saúde própria. Começaram a procurar um imóvel e acabaram alugando o prédio do antigo Hotel Madrid, no Paissandu, que foi inteiramente reformado e equipado.
Passaram de sete para 18 leitos, mas desde o primeiro momento sabiam que seria necessário construir um novo hospital, pois o prédio não era adequado às finalidades a que se destinava. Primeiro, por causa das escadas. Muitas vezes os doentes tinham de ser carregados de maca para o segundo ou terceiro andar, pois não havia elevador. Depois, por causa das enchentes que, a cada verão, inundavam o andar térreo. Foi então que o doutor Dermeval, principal mentor do hospital, sugeriu que construíssem o novo hospital no terreno onde ficava seu sítio, em Duas Pedras, onde o São Lucas está até hoje. Chamberlain conta com orgulho que o financiamento obtido junto à Caixa Econômica Federal para dar conta de um projeto de tamanha envergadura foi liquidado três meses antes do prazo.
“O Dermeval não chegou a ver seu sonho realizado, mas suas últimas palavras para mim foi que olhasse pelo nosso hospital. Eu tenho a consciência tranquila, pois acho que fizemos isso brilhantemente. Tenho o maior orgulho do São Lucas, que é fruto de todos nós, colegas que nos unimos por um ideal e fizemos dele um hospital de referência no Centro-Norte fluminense em diversas especialidades, como a Cirurgia Cardíaca.”
Questionado sobre o quê, em sua opinião, é preciso para ser um bom médico, ele tem a resposta na ponta da língua: “Você tem que gostar daquilo que faz e também de ajudar o próximo. Quem exerce a medicina só para ganhar dinheiro, como tantos por aí, jamais será um bom médico”.
Juramento de Hipócrates
“Eu, solenemente, juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade.
Darei como reconhecimento a meus mestres, meu respeito e minha gratidão.
Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade.
A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação.
Respeitarei os segredos a mim confiados.
Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão
médica.
Meus colegas serão meus irmãos.
Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes.
Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. Mesmo sob ameaça, não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leis da natureza.
Faço estas promessas, solene e livremente,
pela minha própria honra.”
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