Este caso foi passado nos idos de 1935, tendo o Rio Grande do Sul como palco, na época em que era interventor desse estado o general Daltro Filho. Tempo bom para contrabandista, que só faltava ter sindicato com eleições e tudo. Porque o resto eles tinham, inclusive ótima organização.
Na fronteira com o Uruguai, a coisa atingia seu ponto máximo, com a muamba entrando na maior sem-vergonhice possível. Contrabandista já era profissão, respeitada até nos clubes mais fechados. Os abastados possuíam tropas de mulas, que entravam no nosso e saíam do país vizinho por pontos estratégicos do município de Livramento, na maior parte das vezes pejadas de mercadorias estrangeiras que eram espalhadas por toda a região fronteiriça. As casas comerciais de Rosário do Sul, São Gabriel, Santana, Bagé, Dom Pedrito, Caçapava e muitas mais estavam abarrotadas de artigos made in USA. E esperavam ansiosas a chegada de seus contrabandistas prediletos, transformados em autênticos caixeiros-viajantes. Não faltando nem o convite para uma bombada de chimarrão.
Até que chegou um dia em que o general Daltro Filho resolveu dar um basta naquela vergonhosa situação, que desprestigiava sua investidura de interventor. E mandou que o dr. Taborda, por todos conhecido como incorrupto, de uma honestidade a toda prova, fosse para Livramento com carta-branca, com a missão precípua de acabar de vez com o contrabando de fronteira.
Chegou o austero dr. Taborda ao município e já no dia seguinte requisitou homens da Brigada Militar e da Polícia Militar para ajudá-lo na guerra aos ilegais. Foram dadas as primeiras batidas, apreendidas as muambas e presos alguns contrabandistas. Mas eram peixes miúdos e a rede do dr. Taborda queria tarrafear os graúdos, manda-chuvas do contrabando.
Houve, então, uma verdadeira guerra, com muitos tiros trocados de lado a lado. De cá, a turma do dr. Taborda; de lá, a turma da pesada. Quando os contrabandistas verificaram que o homenzinho não era de brincadeira e que levaria a coisa a sério até o fim, reuniram-se em segredo, para deliberar. E assentaram que enviariam um emissário até o bicho-papão, a fim de aplacar-lhe a fúria.
Acreditavam eles, baseados num Pitigrilli de antanho, que todo homem se vende, tudo dependendo do preço. Primeiro, o emissário convidou o dr. Taborda para algumas festinhas, onde pudessem conversar mais à vontade. O dr. Taborda recusou todos os convites. Depois, o emissário apelou para o coração do dr. Taborda, alegando que o comércio do Rio Grande do Sul, o “pobre” comércio gaúcho, estava sofrendo uma crise, quase à ruína, devido àquela campanha contra os humildes “comerciantes” da fronteira...
O dr. Taborda fez que não entendeu, manteve-se intransigente: contrabandista com ele, declarou, acabava na cadeia.
O emissário resolveu, então, apelar pra grossura.
E fez a primeira oferta: dois contos de réis (era muito dinheiro naqueles ontens) para o dr. Taborda terminar de vez com aquela besteira. Não, foi a lacônica resposta. A oferta foi subindo: três, quatro, cinco, dez, vinte contos de réis, uma fortuna num tempo em que um bom salário não passava de 300 mil réis.
Não obtendo êxito na corrupção, passaram a ameaçar o dr. Taborda, insinuando isso e aquilo, que poderia acontecer-lhe. Essa tática ameaçadora, não surtindo efeito, voltaram ao patético, súplices, olhos lacrimosos, falando em mães e filhos, tentando amolecer o coração de pedra do digno dr. Taborda.
E sempre receberam um não, bem sonoro, como resposta. O combate ao contrabando, avisou o dr. Taborda, continuaria cada vez mais violento.
Chegou, então, o grande dia. O emissário surgiu com aquela que, segundo ele, seria a proposta final: 60 contos de réis! Dava para viver o resto da vida à tripa forra, longe do trabalho, de papo pro ar, no dolce far niente, em boa hora inventado pelos italianos.
O dr. Taborda ouviu o representante dos contrabandistas e mais uma vez negou-se a atender ao pedido. Mas ficou certo de que o homem voltaria, quem sabe com uma proposta ainda mais tentadora. Por isso, o digno dr. Taborda foi até o telégrafo e passou urgente mensagem, endereçada ao general Daltro Filho, seu chefe:
“FAVOR MANDAR SUBSTITUTO URGENTE pt SIGO PORTO ALEGRE AMANHÃ pt CONTRABANDISTAS CHEGARAM MEU PREÇO”
E regressou tão honesto como fora.
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