Banhado por muitos rios, o Amazonas tem, como é natural, nas suas vias fluviais, os caminhos por onde correm os mais variados tipos de embarcações, transportando toda sorte de mercadorias.
Como no caso presente, em que uma canoa serviu de “carro-funerário” para seu Tonho, que achara de morrer longe do cemitério, na sua palhoça metida no meio da mata, o mau cheiro espalhando-se pelos igapós.
A avançada idade de seu Tonho não suportara o último ataque de malária. Por isso, os dois vizinhos mais próximos, compadres do extinto, embrulharam o corpo de seu Tonho num lençol e levaram-no para uma canoa, onde o cadáver foi colocado embaixo de um toldo de palha, por eles chamado panacarica. E toca a remar com vigor, muitas horas de rio pela frente, transportando aquela carga pouco simpática até o mais próximo cemitério.
A noite pegou-os no meio do caminho. Músculos cansados, narinas entupidas pelo cheiro do corpo morto, banhados de suor, os dois estavam loucos por um descanso, quando tiveram o tão esperado pretexto.
Misturado ao barulho soturno do sapo-boi, que mandava seus urros do oco dos paus, chegou-lhes aos ouvidos o som inconfundível e bem agradável de uma enfezada viola. O chamamento daquele arrasta-pé tocou no mais fundo da alma dos dois canoeiros. Esquecidos do cansaço, os paroaras encostaram rápido a canoa numa das margens do rio, onde outras tantas embarcações já se encontravam, numa clara demonstração de que o pagode estava concorrido.
Pedindo desculpas ao defunto, amarraram a igara e dirigiram-se céleres para o barracão. Pouco depois estavam entregues ao forró. Gargantas antes ressequidas, agora bem molhadas por algumas talagadas de boa cachaça cearense.
Madrugada alta, um dos dançarinos, pés inchados de tanto valsar, zuruó da cachaçada, saiu cambaleando à procura de um lugar para dormir. E foi direto à canoa dos nossos heróis, pois, sendo a única com cobertura, poderia livrá-lo da chuva que começava. A bebedeira era tanta, que ele nem sentiu o odor que exalava do corpo putrefato. E deitou-se calmamente ao lado do defunto, pedindo até licença pelo incômodo. Bêbado, ele julgava estar se deitando junto a um companheiro de ressaca. E ferrou no sono, acalentado pelo brado longínquo de uma onça.
De manhãzinha os dois caboclos apressaram-se a empurrar a canoa para o largo e reiniciaram a viagem interrompida. O sol já ia alto, quando eles notaram que algo havia se mexido debaixo da cobertura. Ouvindo, a seguir, o que lhes pareceu um bocejo lúgubre, vindo lá do outro mundo.
O dançarino despertava do sono etílico.
Mas os paroaras não olharam para trás para certificar-se. Apavorados, largaram os remos e caíram n’água, imaginando assombração. Um deles ainda teve tempo de gritar:
– É o difunto, cumpadri!
Foi quando o carona, entre sonolento e espantado, examinou melhor o seu companheiro de viagem. E num relance compreendeu toda a história. Dormira, sem pesadelos, ao lado de um cadáver! Não conversou. Pulou dentro do rio e, braços-pra-que-vos-quero, tratou de alcançar a margem.
Na frente, nadando como uns desesperados, os dois caboclos nordestinos. Foi quando um deles, ouvindo outras braçadas, resolveu olhar pra trás. E como não pudesse ver o rosto do terceiro nadador, só pôde chegar a uma aterradora conclusão. Conclusão esta que transmitiu, horrorizado, ao outro caboclo:
– Nada depressa, cumpadri, que o difunto vem aí atrás!
Só quando alcançaram a margem do rio é que esclareceram a situação. Mas do seu Tonho não se tinha mais visão. Perdera-se na distância, levado rio abaixo dentro da canoa.
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