Histórias verídicas - MILHAR DE COVA RASA

por Mario de Moraes
sexta-feira, 25 de julho de 2008
por Jornal A Voz da Serra

Primeiro, foi a Loteria Esportiva. Depois, vieram a Loto, a Sena, a Raspadinha e outros jogos bancados pela Caixa Econômica.

Embora os “corretores zoológicos” digam o contrário, o fato é que esses novos jogos diminuíram bastante o interesse pelo Jogo do Bicho. Porque antigamente, quando não havia tantas opções, era mesmo nos 25 bichinhos que a maioria da moçada arriscava os seus trocados.

Jogar no bicho era proibido (ainda é?). Por isso, o jeito era fazê-lo na encolha, o jogador e o bicheiro trabalhando nas sombras, naqueles ontens de não muito antigamente. É bem verdade que, em certos e protegidos pontos, a cana não era tão dura assim, a grana correndo solta para amolecer a turma do Distrito mais próximo. Tinha tira desonesto que vivia praticamente às custas disso, tendo até dia certo para passar nas esquinas, à procura do que não deveria ser seu.

Como os banqueiros preferiam não se aborrecer, havia sempre uma verba extra para molhar as mãos desses maus policiais. Hoje, com tantos e novos jogos, não deve sobrar muito para a desonesta propina. Embora, como se sabe, há tempos encontraram uma lista numa fortaleza do Bicho onde estavam anotados diversos nomes de policiais que recebiam o “por fora”.

Além disso, as autoridades, não sei por que cargas d’água – nem quero saber –, não estão dando muita bola para esse tipo de contravenção e os bicheiros vêm trabalhando na maior liberdade.

O caso que vou lhes contar sucedeu no bairro carioca de Vila Isabel, aí por volta de l950. Nessa época havia um bar e restaurante, o do Ponto de Cem Réis, onde costumavam se encontrar os desocupados para dois dedos de prosa, animados por algumas garrafas de barriguda. Ficava na Avenida 28 de Setembro, o famoso boulevard, uns quatro quarteirões da Praça Sete (hoje Barão de Drumond). A cerveja preta ia descendo e os “deixa-pra-lá” comentando as últimas do dia. É lógico que futebol e política ocupavam o primeiro plano dos assuntos tratados. Mulher, que nunca fez mal a ninguém, devia vir num terceiro e honroso lugar.

– Tu sabes quem morreu?

O outro não sabia.

– O Chico Perna Torta, aquele malandro da Petrocochino.

Chico não fazia graça pra ninguém. Por dá lá aquela palha, arrebentara o focinho de muita gente. E até a polícia evitava cruzar o seu caminho, pois sabia que o Chico era carne de pescoço. Acontece que na noite escura, quando todos os gatos são pardos, haviam lhe carimbado três balaços no couro, o corpo aparecendo na manhã seguinte estendido na calçada da Rua Petrocochino (naquele tempo de má fama), sem que ninguém soubesse de onde haviam partido os tiros. Testemunhas, como sempre acontece nesses casos, não havia. E mesmo que houvesse, elas não iam aparecer, que não eram bestas de se meterem em buraco tão feio.

– O enterro é amanhã. Vai como indigente, pois nenhum parente apareceu para reclamar o corpo – informou o bem informado.

– Tu sabes pra onde vão levá-lo? – interessou-se o outro.

– Pro Caju. Cova rasa.

– A que horas?

– Parece que é às duas da tarde.

Aquilo nem de enterro podia ser chamado. O mais pobre dos caixões, carregado por quatro coveiros e, um pouco mais atrás, dois investigadores de polícia, cumprindo o aborrecido dever de conferir o ato final. Nenhum deles, no entanto, notou alguém que, ao longe, aguardava apenas que o corpo descesse para o fundo, para cumprir sua tarefa.

Assim que todos se retiraram, ele aproximou-se da cova rasa, tomou nota do número gravado na pedra nua e se mandou. No dia seguinte, manhã bem cedo, foi o primeiro a chegar ao ponto do bicho. E descarregou tudo que tinha no milhar da sepultura do Chico Perna Torta.

Acontece que não deu outra coisa. E, quando saiu o resultado, o sortudo havia abiscoitado uma pequena fortuna.

– Soube que ganhaste no milhar – eram os dois novamente papeando.

– É verdade. Por isso, estou pagando a despesa.

– Quem te deu o palpite?

– O Chico Perna Torta.

O outro espantou-se, quis explicação. Ele deu. Depois confidenciou:

– Mas eu sou grato. Comprei uma sepultura bacana pro infeliz. E ainda dei alguns trocados ao coveiro, pra cuidar dela por algum tempo.

Foi assim que um dos mais temidos malandros de Vila Isabel, que nem parente tinha, saiu da cova rasa e teve lápide naquela de aqui jaz fulano de tal.

Graças ao milhar da borboleta.

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