Histórias Verídicas: A MORTE SOZINHA (2)

Por: Mário de Moraes
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
por Jornal A Voz da Serra

Deixemos que o jovem Tião continue a contar a história de dona Leonor. O palco do monólogo é o Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, onde eu cumpro uma tarefa jornalística, e ele aguarda o momento de reconhecer o corpo da amiga atropelada.

– A família do rapaz que morrera tuberculoso, gente desajeitada, não moveu uma palha, deixando tudo que tinha que ser feito por conta de dona Leonor. Foi ela quem vestiu o cadáver do tísico e enfeitou o seu caixão com flores, que colheu nos jardins da vizinhança. Era assim a prestativa dona Leonor. Eu tenho impressão, moço, que ela fazia tudo aquilo por prazer. Tenho impressão, nada, tenho certeza. Em dia de enterro, toda vestida de preto, era ela quem mais chorava pelo extinto, mesmo que não conhecesse o morto. Dona Leonor entrou em muita casa onde havia defunto fresco, só pra derramar algumas lágrimas. Quando, em Vila Isabel, demorava a aparecer algum desencarnado, ela se mandava pro cemitério do Caju e ali se esbaldava. Ia de velório em velório, chorando por este e aquele desconhecido, em cada capela deixando a sua mensagem de pesar e conforto: “Quem é essa mulher?”, alguns indagavam. “Ou parente ou amiga do falecido”, respondiam, levando em conta o choro abundante e, tenho certeza, sincero de dona Leonor.

O cigarro apaga e Tião volta a acendê-lo.

– Maluca? Não, ela não era maluca. Gostava, isso sim, de ser útil na desgraça. Quando eu tinha 10 anos, menino pobre e favelado, dona Leonor passou quase um mês indo lá no nosso barraco, todos os dias, para cuidar de mim. Eu estava com infecção intestinal e, se não fossem os seus cuidados, não estaria aqui lhe contando esta história. Infelizmente, só eu guardei gratidão no peito. Todos os que ela ajudou, e não foram poucos, não apareceram por aqui...

Tião dá uma longa tragada, solta a fumaça e prossegue:

– Dona Leonor estava com catarata nas duas vistas. Vendo quase nada, teimava em continuar andando pelas ruas. Ontem, quando foi atravessar a 28 de Setembro, o ônibus a apanhou em cheio. Morreu onde caiu. Eu fui dos primeiros a chegar junto ao corpo. Providenciei as velas e as deixei acesas até que o rabecão veio buscá-la. Depois, fui avisando de casa em casa, contando que dona Leonor fora atropelada e trazida aqui pro IML. Bati em todo lugar onde sabia que havia alguém que ela ajudara. Pedi que ajudassem com algum pro enterro. Ah! Quase ia me esquecendo: dona Leonor não tinha família, vivia de favor num quarto de fundos de uma casa da Rua Petrocochino. A maioria, seu moço, alegou que estava dura, não tinha como ajudar. Não fosse o Manuel da Venda, um português muito legal, e ela seria enterrada como indigente. Vai de caixão de terceira. E terá, pelo menos, um acompanhante: o seu amigo Tião. Com uns trocados que me sobraram, comprei uma dúzia de rosas. Dona Leonor não vai sem enfeite pra última morada...

O funcionário do IML chama o rapaz e ele se despede:

– Por isso, moço, se puder, conte a história de dona Leonor no jornal.

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