Guerra, paz e mitologia

segunda-feira, 19 de outubro de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines (*)

Recebi um e-mail de João Moura, colunista do caderno Light de A VOZ DA SERRA, enviando-me matéria sua, publicada em 15 de agosto. Entendi que ali estava uma proposta de debate, que me pareceu bastante interessante, a respeito do que escrevi aqui na última semana sobre o Prêmio Nobel de Barack Obama e de seus possíveis significados. Com certeza, seria ingenuidade acreditar que Obama seja uma mudança por si só. João diz que “se era difícil gostar da política estadunidense com George W. Bush na presidência, agora, em tempos de nova administração, corremos o sério risco de aceitarmos e louvarmos essa máquina graças a uma simpatia despolitizada em torno da figura humana de Obama”.

Certamente, tentar interpretar qualquer personagem de forma despolitizada é correr o risco de resvalar para a maior das alienações. João diz ainda o seguinte:

“O governo Obama é blindado pelo culto a sua personalidade, assim como vimos ao longo da história em torno de líderes como Hitler, Stalin e Mao Tsé-Tung. Mas, no século XXI, esse fenômeno não precisa mais ser orquestrado pela máquina-estado (ditadura), pois é diretamente realizado pela máquina-mercado (liberalismo), através de músicas, camisetas, gibis e comerciais da Pepsi. E, se as ações de Obama parecem seguir o mesmo caminho das de George W. Bush, talvez Obama seja um presidente mais perigoso ainda”.

Sem dúvida, a consideração é procedente. O que me pergunto é por que somos assim, isto é, sujeitos à “máquina-estado” ou à “máquina-liberalismo”. Parece-me o mesmo que sermos joguetes de deuses, como na Ilíada, de Homero, que há quase três mil anos, contou uma história de muitos séculos antes, falando de deuses que têm suas estratégias de lutarem uns com os outros, tendo a humanidade como uma espécie de massa de manobra. Por que precisamos de heróis? Além disso, será que não transferimos essa coisa interior que nos leva a essa necessidade de encontrar heróis ao culto das personalidades de estadistas embriagados pelo poder, como Hitler, Stalin e Mao?

Esta parece-me uma questão extremamente inquietante. Falando de Hitler, vale perguntar: como foi possível ele ter seduzido e atraído o povo alemão para sua loucura, o mesmo povo que vinha produzindo inúmeros pensadores, escritores e artistas importantes, o mesmo povo que, na passagem do século XIX para o XX, havia criado o maior partido socialista, com movimentos sindicais fortes, com mobilização de cidadãos. Vale lembrar ainda que foi na Alemanha que se iniciou, no século XVI, a Reforma Protestante, que teve como efeito secundário a criação do primeiro grande movimento de alfabetização de massas da história humana, o que certamente implicou profunda mudança cultural.

Stalin também significa algo de muito estranho. O poder que teve nasceu da revolução mais radical, que mexeu com mais profundidade em uma estrutura de poder, criada por um longo processo. É um grande contrassenso uma revolução pelo igualitarismo gerar um ditador divinizado como foi Stalin. Não estará este fenômeno ligado à força daquela cultura antiga, dos velhos imperadores e do mito nacional do Estado russo? Sob o stalinismo o pensamento revolucionário foi pouco a pouco ganhando as feições das representações da velha cultura nacional russa, com todos os seus ícones.

Pode ser que Barack Obama seja apenas mais uma vestimenta dessa loucura que tem sido a história humana, da Guerra de Troia até a Guerra Fria, e pode ser que o mundo de hoje não seja muito diferente de uma tragédia grega. Mas também pode ser que seja real, e não apenas uma fantasia, essa energia subterrânea coletiva que levou pessoas a elegerem Obama nos EUA e outras a sentirem um grande alívio no resto do mundo com sua eleição.

Com um olhar realista, é possível dizer que, se olharmos para trás, perceberemos que o galho de onde descemos ainda está balançando, isto é, pode ser que não sejamos mais que macacos sofisticados e não façamos mais do que nos prepararmos para destruir de vez o planeta. Mas, talvez, numa hipótese otimista, esteja na hora de a humanidade representar a si própria, com suas próprias caras e não mais valendo-se de deuses ou heróis.

(*) Jornalista

mauriciosiaines@gmail.com

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