Maurício Siaines (*)
Em mais um episódio da mais recente novela em cartaz no Senado, espetáculo amplamente difundido pela TV em horário nobre e pelos jornais em matérias de primeira página, os senadores Renan Calheiros (PMDB-AL) e Tasso Jereissati (PSDB-CE) trocaram ofensas chulas na última quinta-feira, 6 de agosto. Cada um chamou o outro de coronel, acrescentando uma qualificação pejorativa, que cada um rejeitou aos gritos, tratando-se respeitosamente de vossa excelência. Faltou apenas marcarem uma briga lá fora para revelarem mais ainda seu distinto caráter.
Distintos é o que são, pois, embora pareçam até pessoas comuns em momento de desatino, digamos, em um boteco, eles fogem em tudo da ideia de igualdade. Não são gente comum, que acaba pagando pelo que faz de errado. Eles não pagam, são pagos, regiamente pagos com dinheiro público e nunca se dão mal. Sua função? Ah! Sim, eles têm uma série de obrigações, como membros do Poder Legislativo. Os distintos caracteres desses personagens, porém, sugerem dúvidas sobre sua capacidade de agir de acordo com o que prevê a Constituição nos artigos de 44 a 69. Além disso, há a questão do exemplo, que, às vezes, vai mais fundo na alma do cidadão do que um texto legal. E o que tem acontecido no Senado não é propriamente exemplar de cidadania.
Curioso notar que nenhum dos dois senadores pareceu se ofender com o título de coronel, apenas com a qualificação que vinha depois. Dava a impressão de que ambos estavam à vontade no papel de coronel. Claro que não das forças armadas, nem da PM, nem do Corpo de Bombeiros. Outro tipo.
O uso do título de coronel começou quando, no período da regência, entre o reinado de dom Pedro I e o de dom Pedro II, em 1831, foi criada a Guarda Nacional, organização em que chefes políticos locais ganhavam patentes, tal como os militares. Mas esses chefes locais já existiam desde muito antes. No romance O sertanejo, publicado em 1875, José de Alencar fala de um deles, no ano de 1743, o capitão-mor Gonçalo Pires Campelo. Também descreve como era absoluto o poder que tinham. Eles eram legislativo, executivo e judiciário, tudo em uma pessoa só, com jurisdição sobre imensas áreas, as sesmarias, que lhes eram doadas pelo rei. Quando foi criada a Guarda Nacional, esses chefes locais, que já existiam, passaram a usar patentes como as dos militares, como se fossem títulos de nobreza.
E o posto mais alto era o de coronel. E aí, a moda pegou e parece que dura até hoje, como uma praga. Sociólogos e historiadores já se detiveram sobre o fenômeno do coronelismo. Dissecaram-no e ele continua a existir e se manifestar. O coronel manda e desmanda, tem poder de torturar e matar para impor sua ordem.
Atravessando crises, momentos de profunda transformação social e política do país, os coronéis se adaptaram às novas realidades. Amoldaram-se à república – talvez fosse mais exato dizer que amoldaram a república a eles –, controlando a política local de cada parte da nação, seguiram mandando depois da Revolução de 1930, deram seu jeito na democratização de 1946, aninharam-se no poder durante o regime militar de 1964 e se acomodaram mais uma vez à democracia, depois de 1985.
O coronelismo deixou de ser um fenômeno apenas rural e invadiu diferentes áreas. A política parece ser um campo fértil para os coronéis crescerem e gerarem seus filhotes. Mesmo partidos políticos nascidos de movimentos de cidadania degeneram e aderem ao modo de atuação coronelístico e por isto atraem sobre si o desprezo, o asco.
Mas talvez seja possível acabar com a praga. Bastaria seguir os princípios afirmados por nossa Constituição Federal, em seu artigo 5o, que, em 78 itens, define que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Não se trata de uma peça de ficção, todas as leis do país têm que estar de acordo com este princípio, o que significa que não há espaço, dentro da lei, para coronéis, com sua distinção, com suas normas, códigos de conduta e de fidelidade próprios. Sua sobrevivência é um vício que pode ser superado pela prática da cidadania.
(*) Jornalista
mauriciosiaines@gmail.com
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