Futebol, família e sociedade

quarta-feira, 01 de agosto de 2012
por Jornal A Voz da Serra
Futebol, família e sociedade
Futebol, família e sociedade

Maurício Siaines

As comunidades humanas se organizam em função de suas atividades dominantes. Um mundo de operários, por exemplo, tem sua vida regulada pelo ritmo do trabalho nas fábricas, que determina os horários das outras atividades, quando comer e dormir, o tempo voltado para o lazer. Em um mundo agrícola acontece o mesmo e a vida se orienta pelas condições impostas mais pelas regularidades da natureza: o tempo de plantar, de colher, a estação propícia a uma ou outra atividade.

No distrito rural de Lumiar, as mudanças de vida têm se processado com extrema rapidez e, além das atividades agrícolas e da religião, outra atividade se define como possível elemento estruturante da vida social: o futebol. A VOZ DA SERRA foi recebida na última quarta-feira, 25 de julho, por uma família lumiarense com diferentes vivências do futebol. Em um extremo encontra-se Júlio Delair da Costa, conhecido como Julinho, nascido em 1941, e no outro, seu sobrinho-neto Ícaro José Mafort da Costa, nascido em 1999.

Nos 58 anos de diferença, mudanças deram diferentes funções ao futebol na organização familiar. Descoberto em meados dos anos 1950 como zagueiro técnico e talentoso por nada menos que o goleiro Castilho, do Fluminense, já vencedor de campeonatos importantes, tendo participado de duas Copas do Mundo, Julinho foi impedido pela família, organizada em função do trabalho agrícola, de ir jogar no clube do Rio de Janeiro. Com Ícaro, meio século depois, aconteceu exatamente o contrário: a família se reestruturou para propiciar-lhe a oportunidade de jogar no mesmo Fluminense. Abaixo, trechos da entrevista com Julinho, Ícaro e seus pais, Mário Antônio da Costa, pedreiro e jardineiro, 47 anos, e sua mãe, Ivânia Mafort da Costa, professora, 43.

A VOZ DA SERRA – Vamos começar esta conversa pelo mais velho: Julinho, conte um pouco dessa história. A que horas se jogava futebol, aqui em Lumiar, quando você era jovem?

Júlio Delair da Costa – Só aos domingos à tarde, depois da missa na igrejinha velha. O jogo do primeiro time acabava lá pelas cinco horas, quando começava a escurecer, porque não tinha luz, nunca teve, até hoje.

AVS – A vida das pessoas estava em função do trabalho na lavoura, não é?

Julinho – É, meu pai fazia farinha, então, a gente, durante a semana, trabalhava um pouco na roça e fazia farinha para vender. Foi nessa época, quando eu jogava no infantil, que surgiu essa história: seu Nagib trabalhava com bananas, lá pelo Rio, e disse que vinha um jogador interessado. Depois, ele falou que era o Castilho, que vinha aqui escolher jogadores. Quando fui falar com minha mãe e meu pai, eles não deixaram de jeito nenhum. Era medo, porque nem a Friburgo a gente ia sozinho. Minha mãe começou a chorar, falou que ia se matar. A lavoura era o ganha-pão de todo mundo, não havia empregos, serviços de pedreiro. Depois, as coisas foram evoluindo e a lavoura foi ficando para trás. Na época, a gente sofria. Era mais duro trabalhar na roça. Quando tínhamos um sábado para jogar bola, ficávamos muito satisfeitos. Jogávamos até ficar com dor na barriga, até escurecer.

AVS – E você conversa com o Ícaro sobre essa experiência?

Julinho – Converso com ele e digo: “Você, que tem essa oportunidade que eu não tive, acho que você tem que praticar, ser uma pessoa humilde”. Acho que tem que ter a humildade em primeiro lugar, treinar e se dedicar àquilo [ao futebol].

No início, eu gostava de jogar no ataque, era menos responsabilidade. Na defesa, tinha que combinar o que fazer com o goleiro e com o quarto-zagueiro. A gente nunca jogava em linha, sempre com um sobrando. Gostava de ficar sempre sobrando. Dizia aos outros para deixarem a área livre só para mim e chegava para decidir.

AVS – Há mais de 50 anos, a família impediu a ida para o Rio, agora investe nessa mudança. Como vocês veem essa transformação.

Ivânia Mafort da Costa – A mentalidade evoluiu.

AVS – Como foi essa decisão de, não só permitir que o Ícaro fosse para o Fluminense, mas de acompanhá-lo?

Mário Antônio da Costa – Nós conversamos e, no início, seria só uma vez por semana. Como eram cinco garotos, dividíamos [a despesa]. Mas, quando faltavam dois ficava mais caro. Então, eu e a Ivânia conversamos e decidimos que eu iria morar lá [em Xerém] com ele. Inclusive para ele poder treinar mais vezes, porque uma vez só era pouco.

Ivânia – Porque, de início, uma ou duas vezes por semana estava bem. A partir do momento em que fomos conversar melhor no Fluminense, disseram: “Para os outros garotos está bom treinar uma ou duas vezes por semana, mas para o goleiro, não”. Goleiro treina muito mais, é um treinamento mais puxado. Então, falei com Mário: “Vamos arriscar de uma vez!”.

Prezo muito a escola, quero muito que ele tenha um certificado. Ele pode ou não ser, um dia, jogador de futebol, mas quero que ele tenha um diploma, uma profissão. Nas férias de julho [de 2010] fui para Xerém, fiz a pesquisa de escolas junto com um membro do Conselho Tutelar, que me apresentou várias escolas. A única que tinha vaga era a [Escola Estadual] Santo Antônio, onde ele estuda até hoje, atualmente no oitavo ano. Ele nem era federado ainda, mas resolvemos arriscar. Deixei os dois lá em Xerém em 28 de julho e, no dia 18 de agosto, ele foi federado pelo Fluminense. Como o Mário não estava com carteira assinada na época e eu era professora com duas matrículas no município de Nova Friburgo, era mais fácil para o Mário ir.

O Ícaro treina de terça a sábado, vai para a escola de manhã cedo, então é preciso ter alguém para preparar a comida, organizar a roupa, fazer tudo. E o Mário se responsabiliza por tudo isso.

AVS – E você, Ícaro, como está encarando toda essa mudança de vida?

Ícaro – Gostei muito, mas foi difícil no começo.

AVS – Por que foi difícil?

Ícaro – Por largar meus amigos, a escola, a família.

AVS – E isso foi doloroso?

Ícaro – No começo até foi, mas agora já acostumei. A gente brinca, se distrai e o tempo passa.

AVS – E como é sua rotina lá?

Ícaro – De manhã vou para a escola. Volto, almoço, vou para o treino. Depois, chego em casa, fico mais um tempo acordado e vou dormir.

AVS – Vocês comentam as experiências de cada dia?

Mário – Vamos juntos para o treino. Quando voltamos para casa—uma caminhada de uns 20 minutos—falo com ele: “você poderia ser melhor aqui, ali, tem que ser um pouquinho mais rápido”. Goleiro tem que ser rápido, não tem muito tempo para pensar. O treino acaba entre 17h e 17h15. Todo dia, a gente vai e volta.

AVS – E deveres de escola?

Ícaro – Quando tem, eu faço.

AVS – E você gosta da escola?

Ícaro – Gosto, já estou acostumado. Estou praticamente há dois anos lá.

Ivânia – E eu, daqui, falo com eles duas vezes por dia, uma mais ou menos ao meio-dia e a outra à noite. Pergunto se tem tarefa de casa, se tem prova marcada, se tem trabalho em grupo, trabalho individual. Todo dia pergunto a mesma coisa.

AVS – Um goleiro pode estar jogando uma partida ...

Ícaro – ... excepcional.

AVS – Pois é, você está fazendo uma partida excepcional ...

Ícaro – ... e aí toma um frango e o pessoal só vai lembrar do frango.

AVS – E como você encara esse negócio, essa possibilidade de falhar? A vida tem dessas coisas, não é?

Ícaro – Tem. Às vezes vou lá conversar com a psicóloga e ela é bem legal. E isso ajuda, porque às vezes eu penso uma coisa e ela explica e aí já começo a pensar outra coisa. É muito bom.

AVS – E você acha que teria ficado lá em Xerém sem o seu pai?

Ícaro – Não, no começo, acho que não. Atualmente, eu iria, mas na época, não. Acho que se meu pai não estivesse lá comigo até hoje, não teria ficado.

AVS – Nas horas em que dá uma tristeza fica difícil, não é?

Ícaro – Às vezes dá, sim. Nos finais de semana, que ficamos só em casa, é bem chato.

AVS – Agora, uma outra coisa: Julinho também toca sanfona. Além do futebol, aprendeu a tocar. Como foi isso?

Julinho – Aprendi sozinho, nunca ninguém me ensinou. Meu pai tinha sanfona e a gente ia pegando, mexendo, pegando a prática. Meu irmão Juvenil, com cinco anos já tocava [acordeom de] oito baixos. Sem nunca aprender com ninguém. Depois, foi evoluindo, passou para a 24 baixos, depois para a 48, depois para 80. Hoje em dia ele toca qualquer uma. Meu pai sempre gostou muito, tocava nos bailes. Minha mãe dançava muito. Até os 95 anos ela dançava forró. E ela morreu com 97 anos.

AVS – Como era o nome de sua mãe?

Julinho – Ana Maria Gomes da Costa.

AVS – E você, Ícaro, tem também algum gosto musical, além do futebol e da escola?

Ícaro – Nunca tentei tocar nada, mas acho que se fosse escolher seria bateria, alguma coisa assim. Sou muito elétrico, não paro. Então uma coisa lenta, para mim, não daria muito certo.

AVS – Antigamente, a banda da Euterpe Lumiarense era muito presente. Ela era—e voltou a ser—um elemento da cultura do povo do lugar. Você tocava na banda, Julinho?

Julinho – Tocava na bateria, batia o tarol. Lédio, meu irmão mais velho tocava o bumbo grande, outro irmão tocava o bumbo menor. Então, acompanhávamos a banda. Ela era importante aqui. Íamos às festas e nos dávamos bem. Éramos músicos, não é?!

AVS – O que era “se dar bem”? Era namorar, essas coisas?

Julinho – Botávamos aquela roupa meio escura, com uma camisa branca. Tocávamos nas festas e nos dávamos bem, as meninas falavam: “Olha lá o fulano, está tocando na banda!”. E aí, ficávamos empolgados. Nossa intenção era mais essa. Então era bom.

AVS – E como você vê, agora, a banda renascendo.

Julinho – Ela está renascendo. Outro dia, falei: “Estou feliz porque, na época em que tínhamos a banda o lugar era bem mais animado”. Hoje em dia, vendo a banda tocar de novo, dá uma reação forte ... para todo mundo. Vejo pessoas falarem: “Graças a Deus, nossa banda está voltando!”. Falam isso na rua. Tem que praticar e botar os jovens para começar ali na escola da banda. Porque a música é tudo! Se quando a pessoa vai para o Exército, se tocar bem na banda, vai se dar bem lá. Quem não toca nada, vai direto para o pesado. A música é muito importante, como o futebol.

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