Quando a bainha da saia da noite arrastava pelas calçadas, acendendo os postes da rua e tocando os passarinhos para casa, Vitalina me chamava para tecermos a nossa colcha de sonhos na janela. Arrastávamos então duas cadeiras e no chão deixávamos os cestos, onde guardávamos o nosso material de trabalho: dois pares de raios de lua como agulhas, e risos, dores, desejos, tristezas, lembranças, raivas, fracassos, decepções, medos, amores, desamores, ilusões, realidades, desesperos, descrenças, entusiasmos, alegria e fé, enrolados em diversos novelos.
Sentávamos bem próximas do parapeito da janela e enquanto a saia da noite farfalhava faróis a buzinar aflitos para chegar em casa após um dia inteiro de trabalho, inalávamos o perfume da noite e começávamos a tecer.
A princípio, por ocasião das primeiras laçadas, atrapalhei-me com o manejo das agulhas e ainda não tinha muitos novelos ao meu dispor. Os raios de lua, embora eternos, de tão flexíveis eram difíceis de manejar. Diferentemente de Vitalina, que tinha uma variedade de novelos, os meus eram uns poucos metros de fio: o dos amores, um pouco menos, e o da fé, um pouco mais roliço, apresentando pequenos nós que embaralhavam o tricotar.
Vitalina dizia que a prática e mais novelos viriam com o tempo. E que os nós no fio da fé eram para ser assim mesmo, “porque senão não é fé”.
Também custei a me acostumar com a falta de visibilidade do trabalho. A colcha parecia não passar daquela primeira tripa de laçadas que inicia o crochê. Vitalina ria da minha impaciência, dizendo que no início as colchas da janela são difíceis de se ver. E torcendo na agulha um fio, arrematava: “A veneziana do tempo é que dá forma às colchas”.
Vitalina dizia que “não há impossível que não se realize com uma boa receita”. A sua convicção era tanta, que, quando ouvia alguém reclamando de que algo não corria bem, ela dava um profundo suspiro, fechava os olhos por alguns segundos e depois surpreendia o aflito, dando-lhe algumas de suas receitas, que iam dos “Quiabos da Felicidade” às “Batatas do Dinheiro”.
Virgínia, por sua vez, não era tão eclética com as receitas e achava que “não há mal que não se cure com um doce”, conforme ela mesma dizia. Acreditava tanto nessa máxima, que ela me parece ter sido a única avó a substituir a tradicional canja dos convalescentes por arroz-doce.
Confesso que na infância fui seduzida pela magia de Virgínia e que muitas vezes inventei dores em troca do seu famoso pudim de pão, ou de uma farta fatia de pudim do céu.
Embora poderosas e eficazes, as magias não eram iguais. A magia de Vitalina, pagã por natureza e coração, era mais explícita e desprovida de qualquer culpa cristã (o seu famoso vinho de Eros que o diga...). Já a de Virgínia, católica e fervorosa devota de Maria, era menos envolvida com a gula da carne e mais voltada para as transcendências (ela dizia que “as santas, os santos e os anjos não gostam de muitas intimidades”). Apesar de tão diferentes, o engraçado é que as duas formavam um perfeito equilíbrio que só entendi muitos anos mais tarde, quando estudei o maravilhoso sincretismo religioso que acontece no Brasil...
Deixe o seu comentário