Felga: uma história de criação e de trabalho

quinta-feira, 24 de novembro de 2011
por Jornal A Voz da Serra
Felga: uma história de criação e de trabalho
Felga: uma história de criação e de trabalho

Maurício Siaines

Felga de Moraes, artista plástico friburguense, não é figura difícil de encontrar pela cidade, embora atualmente ande também por Búzios. Pensar sobre sua carreira traz algumas respostas sobre diversas questões, como a formação do artista, a comercialização de suas obras e o processo de criação. Essa reflexão aconteceu em entrevista que ele deu para A VOZ DA SERRA, no último sábado, 19, no Centro de Arte, onde está até dezembro uma exposição retrospectiva de seu trabalho, que ele faz questão de afirmar não representar tudo o que já fez ao longo dos últimos 48 anos. Abaixo, alguns trechos dessa conversa.

A VOZ DA SERRA – Consta que sua carreira começou quando você tinha 12 anos, lá por 1963. Como foi isso?

Felga de Moraes – Foi a decoração de Carnaval de Nova Friburgo Country Clube, com o tema Carnaval no Hawaii. Na época, não havia quem fizesse e eu disse para o então presidente do clube: “Eu sei fazer isso”. Aí ele me perguntou o que eu queria para fazer e eu disse: “Quero um ajudante e uma pessoa que de vez em quando me traga um sanduíche com uma Fanta Laranja”. Ele concordou e aí eu fiz a decoração inteira, com o ajudante, e toda hora ele mandava o sanduíche e o refrigerante. Ficou bonito e, no final do serviço, ele me deu 5 mil cruzeiros, aquela nota amarela.

Depois disso, numa empresa que vendia automóveis da Chrysler me perguntaram se eu fazia também coisas de Natal, se eu faria um Papai Noel dentro de um carro Chrysler. E então fui fazer aquilo. Quer dizer: comecei cedo dentro desse ramo. E as coisa foram acontecendo ao acaso. Nunca estudei, nunca fiz curso. Foi sempre assim, resolvendo problemas imediatos.

AVS – E sempre aqui, em Nova Friburgo?

Felga – Sempre em Friburgo. Autodidata, cresci aqui e trabalhei minha vida toda aqui.

AVS – Fora esses períodos em que você esteve fora do Brasil.

Felga – Só exposições.

AVS – E atualmente você está meio dividido com Búzios, não é?

Felga – Estou dividido com Búzios porque quero outro clima, quero desenvolver agora um trabalho com esculturas de ferro, com pescadores, redes. Então, acho que Búzios é um lugar bom para fazer isso. Lá tem muitas pracinhas públicas e recantos que merecem e cabe homenagear, também, cidadãos de Búzios, assim como temos feito aqui, com Galdino do Valle, com Guignard.

Mas, como eu dizia, tudo na minha vida foi ao acaso. Um rapaz que trabalhava na Fábrica de Filó conversando comigo perguntou se eu não sabia fazer desenhos de estamparias de tecidos, porque precisavam lá na fábrica. E eu disse: “Não sei, mas posso tentar”. Aí fui para a Triumph Internacional, fiz um teste e me disseram: “Se você fizer um desenho por ano está bom para nós”. Fiquei lá seis meses, fiz sete estampas e duas cortinas. E aí encerrei minha carreira na indústria. Pensei: “Já fiz o que tinha de fazer nesse ramo”.

Outra vez, alguém precisava reproduzir um casarão antigo de uma fazenda em uma tapeçaria. E constatou que ninguém fazia isso em Friburgo. E disseram a ele que “havia o Felga que podia quebrar o galho”. Me procuraram e fui lá na loja, aprendi como eram os pontos, como se trabalhava, como se pintava a tela. Fiz essa primeira tela por encomenda. Já na segunda, comecei a fazer tucanos, araras ... passei para um estilo próprio.

AVS – Isso que você está falando sugere a questão da relação entre a criação e a técnica.

Felga – Acho que a técnica é a base. Por exemplo, na serigrafia. Fui ao Amâncio de Azevedo, então candidato a prefeito e perguntei se poderia ajudar na campanha de alguma maneira. Me perguntaram se eu sabia fazer flâmulas e respondi que sabia, mas não tinha a menor ideia. Aí fui ao Rio de Janeiro em uma loja que vendia esse material de silk screen e perguntei como fazia, qual era a técnica. Aí, me deram uma explicação de meia hora, voltei para Friburgo e fiquei um dia e uma noite trancado em um quarto tentando descobrir como se revelava uma tela de serigrafia e consegui. Então, estampei 10 mil flâmulas sem parar, com medo de errar e não saber revelar a tela de novo. Então, aprendi a fazer serigrafia. Depois passei a fazer trabalhos de arte em cima da serigrafia. Quer dizer, a técnica é a base. A gente tem que trabalhar com o que tem.

Por exemplo, no desenho. Nunca gostei de desenhar, gostava de tintas. E tinha uma exposição na Suíça em que me pediram 24 óleos e eu tinha conseguido fazer 12, até faltar uma semana para viajar. E aí alguém me sugeriu fazer desenhos, que são coisas rápidas. Mas nunca tinha desenhado e me falaram de uma loja que tinha material de desenho. Fui lá sem o menor conhecimento de material e de técnica de desenho. Mas comprei o material, fui para casa e completei o que precisava levar para a exposição. Nessa ocasião, quando o rapaz da loja foi fazer a nota fiscal do que tinha comprado, perguntou meu nome e eu disse, ele se espantou e perguntou: “Você está querendo gozar com a minha cara dizendo que não conhece material de arte?”. Respondi que não conhecia mas sabia desenhar. Sempre usei o que tinha à mão, nunca me interessei por aperfeiçoamento de técnicas. Vou desenvolvendo de acordo com o que eu tenho.

AVS – O pintor Paul Cézanne (1839-1906) dizia que o Museu do Louvre era o lugar em que todos os artistas de sua geração aprenderam, observando os inúmeros trabalhos anteriores e suas técnicas ...

Felga – Mas era o que já tinha sido feito. Eu separo o pintor ou o escultor do artista. O artista é aquele que cria. Evidentemente, em cima de alguma base. O primeiro troféu que criei, para o doutor Heródoto Bento de Mello, para o Prêmio Cadima de Arquitetura, aconteceu assim: ele me chamou em seu gabinete e pediu que criasse o troféu. Disse-lhe que nunca tinha feito esse tipo de trabalho e ele respondeu: “É por isso que estou lhe pedindo, porque se for pedir a outra pessoa que já tenha feito troféus, vou ter o que já se encontra por aí e quero uma coisa diferente”. E aí fiz o troféu, que, na época, teve bastante sucesso porque era diferente, bonito. O artista tem que criar alguma coisa nova. Principalmente hoje, porque a arte clássica teve sua época. Os Van Gogh e os Rembrandt fizeram a época deles. Agora estamos em outra época muito mais difícil do que a deles porque quase tudo já foi feito. Então, criar hoje uma coisa diferente é quase que impossível. Talvez demore muitos anos até que apareça uma coisa realmente nova.

AVS – E as possibilidades dos recursos digitais?

Felga – Esse é um tipo de arte por que não me interessei. Gosto das coisas mais simples, da serigrafia simples, sem muita técnica. Gosto daquela técnica chinesa de dois mil anos atrás, que acho uma arte mais pura. Evidentemente que a tecnologia ajuda. Você não pode comparar um escultor japonês, dispondo de toda tecnologia para cortar o que quiser, com um artista brasileiro do Nordeste, que só tem um formão velho. São artes diferentes. A feita no Nordeste, dentro da nossa cultura, pode ser muito melhor do que a feita com toda tecnologia no Japão. Acho que a tecnologia ajuda, por um lado, e atrapalha, por outro. Porque se pode ir perdendo a sensibilidade. As coisas feitas manualmente têm outra característica.

Essa relação que fiz entre o artista que cria e o que fica em estilos já criados se dá na música também. O que adianta o sujeito hoje querer compor bossa nova? Não tem mais valor. A que tem valor é a composta na época. Quantos anos vai levar para aparecer outro Vinícius de Moraes para criar uma outra coisa? Nesses intervalos, os artistas ficam perdidos. Alguns ficam copiando e outros tentam não copiar. Sou contra aulas de pintura. No máximo, uma orientação, um pouco de técnica. Já me pediram orientação sobre o material a usar em pinturas e eu respondi: “Se você vai pintar um quadro bem grande, o pincel tem que ser grande, se for pequeno, o pincel tem que ser pequeno. Não tem como eu estipular o material que você vai usar se não sei o que você vai fazer”. Sou contra ensinar arte.

AVS – Não vale a pena haver encontros de artistas para troca de experiências?

Felga – O artista geralmente é muito individualista. Gosto de me juntar com outros artistas para beber cerveja e falar de bobagens, não de arte. Porque não me permito chupar conhecimentos de outro artista, nem acho que devam tirar dos meus. Isto misturaria personalidades diferentes.

AVS – Mas Paris, por exemplo, foi um lugar de muitos artistas plásticos. Existe uma relação entre a vida social de determinado lugar e o que as pessoas fazem.

Felga – Veja: você vai a Paris e até hoje você vê aqueles artistas nas ruas. Mas todos eles pintam igual, é aquela paisagem sombria, o chão molhado porque dá um efeito bonito, ou então aquelas casas antigas ... todos pintam igual. Porque é uma maneira de sobrevivência do artista. A grande maioria dos artistas produz para sobreviver. Ele pinta o que os outros querem que ele pinte. Aqui em Friburgo, por exemplo, existiu seu Mário Ferreira. Um dia eu cheguei lá e ele estava danado da ida e me explicou: “Pintei esse quadro, essa árvore maravilhosa e chegou uma senhora aqui e disse que só compra se eu pintar meia dúzia de galinhas embaixo, porque ele adora galinhas; e estou pintando as galinhas porque preciso vender o quadro”. Já tive proposta de industrializar as coisas mas minha intenção não é ficar rico, é fazer um trabalho meu. Nem sou regrado nisso, fico um ano sem olhar para isso. Não gosto de mexer com tinta porque suja a mão. Acho um absurdo ficar 15 dias em cima de um quadro, em vez de ir para Búzios, mas às vezes tenho essa necessidade de fazer porque está em mim. Não foi uma opção de vida. Se pudesse ter optado, queria ser um banqueiro, rico. Mas, infeliz ou felizmente, nasci assim. A arte não foi feita para a elite, não foi feita para comércio. Tenho elogios de “pessoas de nível”, de classe social alta, como tenho do carteiro que bate na minha porta. É isso que a gente quer. Passar um pouco da gente. Não estou fazendo uma exposição de quadros bonitos, estou expondo meu trabalho.

AVS – Insistindo, ainda, nessa relação entre o artista e a sociedade em que ele se forma, como nasceu o artista Felga na vida social de Nova Friburgo?

Felga – Tem até um trabalho aí [na exposição] de quando eu tinha 5 anos. Um professor viu meu trabalho, chamou meu pai e minha mãe e disse que meu desenho era uma coisa incomum aqui na cidade, uma corrida de automóveis, e ali havia vendedor de bolas, um cachorro solto na pista, um avião da Esquadrilha da Fumaça. Ou seja, havia ali mais informações do que uma criança normal daria. Tem vida nessa corrida. Sugeriu, então, que meus pais incentivassem minha criatividade. E daí foram acontecendo as coisas.

No teatro, por exemplo, Jaburu uma vez me pediu ajuda e fiz alguns cenários. Na época, tive elogios do maior crítico de teatro do Brasil, Ian Michalski. Porque era uma coisa inédita, pois não aprendi a fazer cenografia em uma escola e tive que criar uma coisa. As coisas vão acontecendo ao acaso. A arte é o acaso.

AVS – Outra questão é a comercialização da obra de arte, condição para a sobrevivência do artista. Como você vê isto?

Felga – Eu sobrevivi com a minha arte, mas fiz 25 decorações de Natal para Nova Friburgo, 19 decorações de Carnaval para Cachoeiras de Macacu, fiz trabalhos para Bom Jardim, Cordeiro, Cantagalo, Teresópolis, Maratáizes. Natal, Carnaval, fiz praticamente todas as Festas da Cerveja de Friburgo, a montagem, a logomarca, a decoração. Eu trabalhei para sobreviver disso. Agora, eu preciso de muito pouco para viver; tanto como escargot quanto mortadela braba. Tanto bebo a champanhe francesa, como a aguardente de cana. Estou satisfeito. Vivi uma vida de rico, fui à Europa uma porção de vezes, tenho minha casinha em Búzios, moro em um bairro bonito de Friburgo, tenho meu carro zero quilômetro. Mas é tudo fruto do meu trabalho e de minha mulher. A gente até consegue viver bem tirando também da arte.

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