Experiência de mudanças

quinta-feira, 28 de julho de 2011
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines

Nascido em São Pedro da Serra, 7º distrito de Nova Friburgo, em 1984, Mathias Mafort teve as mesmas vivências dos jovens de uma sociedade em transição da localidade, que se desliga cada vez mais do mundo exclusivamente agrícola, dominante até pouco tempo atrás. Teve porém a experiência do pai, Warley Ouverney (1945-2003), que já havia experimentado a troca da agricultura por outro ofício, o que o levou a entrar em contato com diferentes ambientes e permitiu-lhe compreender o processo de mudanças e estimular os filhos a encontrarem novos caminhos.

De São Pedro, Mathias foi estudar no Rio de Janeiro e, depois, fazer mestrado na Alemanha. Sua trajetória de vida foi marcada pela vontade de conhecer e sempre acompanhada pela música, outro aprendizado que realiza desde a infância, passando por diversos instrumentos, sempre aproveitando oportunidades que surgiam. Exemplo disto foi o modo como voltou a tocar acordeom, nos quatro meses de uma greve que paralisou a universidade. A dedicação ao acordeom foi motivada pelo sentimento de compromisso com a cultura regional em que se formou, onde o instrumento é muito presente.

Atualmente, Mathias mora e trabalha no Rio de Janeiro. Abaixo, trechos da conversa que teve com A VOZ DA SERRA, no domingo, 24 de julho, com reflexões sobre o que tem visto pela vida afora.

A VOZ DA SERRA – Como você foi encontrar esses seus caminhos pela vida que o levaram pela música e pelo estudo?

Mathias Mafort – Fiz todo o ensino fundamental e o médio em São Pedro da Serra, onde havia um ambiente muito interessante no colégio. Havia muitos professores com mestrado ou doutorado, que resolveram sair dos centros urbanos a procura de uma vida em localidade do interior, mais pacata e tranquila, onde podiam também desenvolver um trabalho, principalmente ambiental. Essa gente foi morar lá e fez uma diferença tremenda na vida de toda uma geração. Nós crescemos nesse meio. No meu caso, é também importante frisar o meio familiar. Meu pai teve um papel fundamental no desenvolvimento meu e de meu irmão, foi um grande incentivador, ele já tinha tido a iniciativa de mudar o rumo da família, história em que meu irmão também embarcou, minha mãe também deu um suporte enorme. Meu irmão foi abrindo caminhos mesmo. Se não me engano, foi o primeiro de São Pedro a ir estudar em uma universidade federal, enfrentou um mundo que era desconhecido a princípio. E eu me criei nesse meio e fui trilhando rumos diferentes. Também me envolvi muito com a música, da dança e da cultura popular.

AVS – Como foi o papel de seu pai na descoberta desses caminhos que você e seu irmão trilharam?

Mathias – Meu pai, nascido em 1945, era de família tradicional daqui da região, uma família toda de agricultores. Em um certo momento de sua vida, ele tomou a decisão de mudar todo caminho, mudando de profissão. Devia ter uns 19 anos, se não me engano ...

AVS – Isto lá por 1964 ....

Mathias – Por aí. Ele começou a produzir calçados. Montou um ateliê em São Pedro e para isto teve que estudar, buscar conhecimento em outras áreas. Isto fez despertar nele essa valorização do conhecimento. Na época não se tinha muito acesso a conhecimentos na região, havia as escolas primárias e além disso não havia muito. E era difícil sair daqui. Quando eu e meu irmão nascemos, ele já tinha a noção da importância da busca do conhecimento na formação da pessoa, daí veio a nos incentivar a trilhar esse caminho.

AVS – E aonde ele foi para aprender o ofício?

Mathias – Ele tinha tido contato com livros, com o material e também com os mestres da época, que trabalhavam com couro e calçados, em Friburgo e outras regiões. Ele ia frequentemente a São Paulo buscar material, o que na época era dificílimo, era um outro mundo, era quase como ir para a China ou o Japão. Tudo isso modificou muito a cabeça do meu pai e influenciou no rumo da família. Meu irmão, sete anos mais velho que eu, tornou-se uma pessoa extremamente importante [para mim] porque absorveu tudo isso e concretizou [seus projetos], influenciando todas as fases da minha vida. Ele sempre se interessou por muita coisa, por línguas diferentes, por culturas, por história, um cara extremamente culto, que gosta muito de estudar. E eu vendo isso, acabei seguindo o mesmo caminho. Incentivaram-me muito também com relação às artes — pintura, dança, música.

AVS – Você então saiu para o mundo a partir de uma vida social em uma família de uma sociedade tradicional de uma localidade isolada, no interior do estado do Rio, embora não esteja tão longe dos centros urbanos.

Mathias – Isto também é interessante. São Pedro da Serra e Lumiar estão relativamente perto do Rio, que é uma grande metrópole conectada com o mundo inteiro. Mas, por uma série de fatores, esse isolamento perdurou até a década de 1980. Os colonos chegaram há mais de 150 anos e permaneceram naquele modo de vida do século XIX por muito tempo, porque houve um isolamento. Tanto que as famílias daqui se misturavam, mas as influências externas eram muito poucas. Até a geração de meu avô ainda se falava alemão ou francês. A geração de meus pais perdeu isso e a minha consequentemente. Houve um isolamento apesar da proximidade do Rio e de Friburgo. Isto é interessante e fez com que tivéssemos uma vida completamente diferente. A luz chegou na época em que eu nasci, então dá para ver a transformação que aconteceu na minha vida, saindo de um ambiente que não estava inserido nesse contexto de desenvolvimento do mundo e acompanhando esse desenvolvimento em um tempo muito curto. Você nasce e não tem essa parafernália toda de luz e aparelhos eletrodomésticos e eletrônicos.

AVS – Você tem a lembrança da falta da luz?

Mathias – Tenho, na época havia uma usina comunitária em São Pedro e se pagava uma taxa para usar a eletricidade. E tem também as histórias que eram contadas. Isto é muito bom porque serve à preservação, é uma base cultural. Depois, vem todo esse aparato. Depois, eu saí para fazer a graduação em engenharia de agrimensura, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E lá, na Rural, foi um ambiente muito interessante, rico em diversidade. É uma universidade privilegiada porque tem gente do Brasil inteiro, é conectada com as grandes escolas agropecuárias do país todo, que mandam seus alunos para lá, onde tive contato com culturas de todo o Brasil, com sotaques diferentes, com maneiras de pensar diferentes, com pessoas fisicamente diferentes. Isto é muito interessante porque dá uma dimensão do mundo. Antes, eu estava ligado a uma pequena localidade e, a partir de então, ganhava uma dimensão de Brasil, da cultura brasileira. Dali fui para a Alemanha e a coisa se transformou mais ainda, porque estudava com gente quase que do mundo inteiro. E aí, tem-se que aprender línguas novas, modelos mentais diferentes, compreender a cultura do outro para poder se comunicar, entender melhor e respeitar as atitudes de cada um de seus [novos] amigos. Um é muçulmano, que veio de Bangladesh, outro é extremamente católico e vem da Polônia, outro é da Espanha, outro é da África, outro é da China.

AVS – Você, então, saiu de uma realidade em que havia um isolamento, e partiu para conviver com o planeta inteiro.

Mathias – Exatamente. Isto exige uma alta capacidade de adaptação que precisa ser desenvolvida durante esse processo.

AVS – E essa capacidade de adaptação se desenvolve ...

Mathias – ... quando se tem vontade própria.

AVS – Mas precisa partir da cultura original. Então, há essas duas coisas: a vontade e a cultura de que se parte. Como você vê a relação entre essas duas coisas?

Mathias – Isto também é interessante, porque depende, também, do ambiente em que você foi criado. Você tem que ter sido criado em uma ambiente que propicie a valorização da diversidade. São Pedro é um lugar pequeno, mas pode-se dizer que também é um lugar cosmopolita. Na minha infância já tive contato com pessoas de outros países, Havia alemães que moravam lá, franceses, norte-americanos, argentinos. Isto, desde cedo, fez parte da minha formação, isto é, [esses estrangeiros] não eram tão extraterrestres para mim. Esse processo de formação inicial me fez aceitar todas as diferenças que vim a encontrar pelo meio do caminho.

AVS – Como a música entrou em sua vida e que papel ele teve?

Mathias – A música começou muito cedo. Meu primeiro contato foi através de um acordeom que ganhei do meu pai quando tinha uns três anos. Era um acordeom que devia ter uns três baixos e eu tocava aquilo o dia inteiro dentro de casa. Até que um dia o fole acabou rasgando e eu fiquei sem acordeom por um tempo.

Meu pai tinha a loja e ao lado ficava o seu Ismael, que era o grande promotor de encontros de sanfoneiros, havia os instrumentos de percussão que ficavam ali. Como minha casa era muito perto, eu ficava brincando naqueles instrumentos e lá pelos quatro ou cinco anos comecei a olhar diferente para os instrumentos e acabei me envolvendo com aquilo. Mais tarde, quando tinha uns dez anos, ganhei uma escaleta do meu pai e comecei a tocar. Depois, passei para a flauta doce. Mais tarde, comecei a tocar com o pessoal do Nó Cego, que já começava a desenvolver trabalhos por lá e eu, com cerca de 14 anos, comecei a tocar com eles também, participar do movimento de uma forma geral. Antes disso, entre os 11 e os 14 anos, foi muito importante para mim a capoeira e com ela veio o berimbau, o atabaque, o pandeiro e as cantigas. Isso foi muito importante musicalmente para mim. Depois disso, senti a necessidade de estudar a teoria musical. Daí, fui estudar na Campesina Friburguense, que tem um curso parecido com o do Instituto Villa-Lobos, no Rio. Entrei para estudar saxofone mas, entrando lá, me apaixonei pela clarineta. Estudei clarineta, toquei na banda-escola e na banda sinfônica da Campesina por uns três anos. Fizemos algumas turnês pelo Sul, por Minas Gerais. Estudava todo o tempo que tinha. Trabalhava na loja do meu pai e ali mesmo eu tocava.

AVS – E hoje, depois de tantas mudanças, como é sua relação com esta região de São Pedro da Serra e Lumiar?

Mathias – No momento tenho vindo aqui com pouca frequência, mas é uma questão de fase de vida. Trabalhando no Rio, com toda essa correria, às vezes fica difícil vir aqui, mas todas as minhas raízes estão aqui, minha mãe mora aqui, meus tios, todos os meus melhores amigos de infância estão aqui. É um ambiente muito agradável para mim, vou às casas das pessoas, tomo café com um, falo com outro, vou à roça e converso, vejo a lavoura, à noite faço um som. Eu sou daqui mesmo, gosto daqui e tenho vontade desenvolver alguns projetos por aqui.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS:
Publicidade