Maurício Siaines
Dom Clemente Isnard, nascido em 1917, foi o primeiro bispo da Diocese de Nova Friburgo, entre 1960 e 1994. Sua gestão atravessou todo o período do regime militar e ele não se furtou a atuar também na proteção a perseguidos políticos da época. Em uma conversa de cerca de uma hora, no Rio de Janeiro, no dia 15 de julho, ele relembrou algumas dessas experiências.
A VOZ DA SERRA - Como foi sua atuação durante o regime militar de 1964 a 1988?
Dom Clemente Isnard - O golpe militar aconteceu em 1964 e o regime durou até 1988. E eu estive como bispo durante todo esse tempo. Em Friburgo, o prefeito era da UDN [União Democrática Nacional, partido político dos articuladores civis do golpe de 64], mas ele me respeitou, tanto que não organizou em Friburgo a célebre Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Foi uma atitude de respeito à minha pessoa, sabendo que eu não aprovava aquilo. Eu nunca tive uma atitude política porque achei que não era minha função. Sempre votei e ainda voto, mas nunca participei da vida política. Acho que a Igreja não deve se meter na política. Eu fui vice-presidente da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], no período de quatro anos em que a instituição era presidida por dom Ivo Lorscheiter. Nós comungávamos das mesmas ideias e o governo o respeitava muito, tinha um pouco de medo dele, que era bispo de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. [Dom Ivo Lorscheiter presidiu a CNBB durante período muito duro do regime militar, entre 1965 e meados da década de 1970. Nesse período, abrigou na Igreja brasileira vários defensores da Teologia da Libertação, além de bispos e sacerdotes de tendências pouco conservadoras.] Nunca escondi minhas ideias. Não pregava na igreja denunciando as torturas, mas escrevia. O Candido Mendes também tinha essas nossas ideias, mas também foi respeitado. Não o prenderam, embora soubessem, mais ou menos, o que ele pensava. Agora, pessoas de menos realce sofriam, inclusive padres. Houve padres mortos. Um deles, o padre Henrique, em Recife, cuja morte foi uma espécie de meio de atingir dom Hélder [Câmara], que era o bispo de Olinda e Recife. Era um padre moço, bom, encarregado dos jovens e foi morto barbaramente. Havia entre os bispos uma atitude de profunda independência e de condenação às torturas. Eu ordenei um padre, Gérson da Conceição, que era profundamente ligado à reação antimilitar. Ele acabou sendo preso e condenado. Ele era, na época, vigário de Japuíba [em Cachoeiras de Macacu]. É claro que eu senti muito a prisão do padre, assim como as torturas que ele sofreu. No início, não era possível falar com ele, não deixavam. Depois eu pude visitá-lo, lá em Deodoro [na Vila Militar, no Rio de Janeiro]. Fui lá apenas uma vez porque eu não podia me movimentar com facilidade.
AVS - Houve em Nova Friburgo a história de um antigo militante contrário ao regime militar, o Ivaldeck Barreto. Ele se refere ao senhor como a pessoa que facilitou sua saída do país, quando era perseguido. O senhor se lembra dele?
Isnard - A minha casa nunca foi revistada. O Barreto, se não me engano, eu escondi na minha casa. A casa do bispo era respeitada. Havia também uma professora em Lumiar, Dona Maria Mouta. Lá eu tinha começado um pequeno seminário e eu mandei alguns perseguidos políticos para lá, que era muito longe e, antigamente, a estrada era muito ruim, perigosa. Encontrei uma acolhida por parte dela, Maria Mouta. Ela tinha liberdade para não receber aquelas pessoas. A casa dependia de mim, que era uma autoridade, mas também dependia dela.
AVS - E houve aquele bispo de Nova Iguaçu, dom Adriano Hipólito, que também sofreu perseguições...
Isnard - É, ele era muito meu amigo. Eles o sequestraram, levaram para uma estrada deserta, despiram-no e pintaram de vermelho. E ele ficou nu, pintado de vermelho, na beira da estrada. E ainda levaram o carro dele e nunca devolveram. Além do mais, eram ladrões.
AVS - Entre os opositores do regime militar houve grupos pelo que na época se chamou de luta armada. Até hoje há quem chame de terroristas as pessoas que fizeram essa opção. O que o senhor acha disso?
Isnard - Eles não eram terroristas. A palavra ‘terrorista’ era uma palavra dos adversários. Houve o Frei Beto, que era dominicano, foi preso e sofreu muito. Houve o Catão, também. Este eu visitei, fui a São Paulo e lá encontrei com alguns dominicanos que estavam presos lá. Catão tinha sido meu dirigido espiritual e entrado no Mosteiro de São Bento. Depois, ele saiu e aí é que entrou em contato com os chamados terroristas. Depois esteve preso, bastante tempo. Não sei se sofreu torturas.
AVS - Voltando à história do Ivaldeck Barreto: ele precisou sair daqui, foi para o Chile, na época governado pelo socialista Salvador Allende, e, depois, para a França. Ele saiu daqui com a esposa e uma filha de um ano. O que mais o senhor poderia contar?
Isnard - Eu me lembro de quando ele foi se despedir de mim, em Friburgo, e eu o acompanhei até o ônibus para o Rio, para, de lá, iniciar essa viagem. Era um ponto de interrogação. Muitas vezes a pessoa era presa na fronteira. Mas ele não foi preso. Ele trabalhava no movimento de jovens da Igreja. Era já casado e conseguiu furar a fronteira para ir para o Chile. Mas, depois, no Chile, veio o Pinochet, e ele teve que sair e foi para a França. E lá ficou em paz. Depois, quando pôde, voltou ao Brasil.
No dia 1º de abril de 1964, instalou-se no Brasil um regime político dirigido pelas altas patentes militares, que se estendeu até 1985 e que foi definitivamente superado em 1988, com a entrada em vigor
da nova Constituição, nascida da Assembleia Nacional Constituinte, eleita em 1986.
Foi a última manifestação de uma tendência de intervenções militares na vida do país, iniciada com o golpe que proclamou a República, em 15 de novembro de 1889, que passou por movimentos políticos como o tenentismo, dos anos 1920, e a própria Revolução de 1930, que levou ao poder os ‘tenentes’ da década.
O período que vai de 1930 a 1945, embora sob a presidência do civil Getúlio Vargas, também foi marcado pela presença de chefes militares que davam garantia ao regime, como os generais Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, tornando-se este último o sucessor de Vargas, entre 1945 e 1950.
Na saída de Vargas do poder, nasceu a Assembleia Nacional Constituinte de 1946, e os partidos políticos criados ou reorganizados. Os partidos mais expressivos foram o Partido Social-Democrático (PSD), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e União Democrática Nacional (UDN)
Vargas foi eleito presidente em 1950, pelo PTB, com apoio do PSD, e governou até sua morte, em 1954, período também marcado por ativos movimentos de militares, até aquela última crise, que levou ao licenciamento e consequente suicídio do presidente da República.
Golpes e contragolpes militares marcaram o ano de 1955, em função da eleição e da posse do presidente Juscelino Kubitscheck. Depois de JK, foi eleito Jânio Quadros, em 1960, que governou apenas até agosto de 1961, quando renunciou, acontecimento que deu início a nova crise com intervenção de militares, superada parcialmente com a posse do vice-presidente eleito, João Goulart, do PTB, considerado ‘filho’ político de Getúlio Vargas, mas em regime parlamentarista, uma solução de compromisso com os conspiradores militares, com expressão civil na UDN. No início de 1962, um plebiscito restituiu ao presidente da República os poderes previstos pela Constituição de 1946, então em vigor.
O período seguinte foi de marchas e contramarchas, ora da política reformista de João Goulart, ora das articulações golpistas, que finalmente tiveram sucesso em abril de 1964. (MS)
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