Ficamos frente a frente em plena avenida principal. Eu caminhava completamente distraído, pensando no dia de amanhã, mas não o suficiente para não reparar que ela vinha pela mesma calçada, pequena e linda como sempre. Toda de preto, discretamente elegante e com a mania irritante de deixar o belo rosto escondido atrás do enorme óculos escuros.
Paramos um em frente ao outro e ela ficou me olhando, aguardando meu cumprimento. Tirei o cigarro do canto da boca (um hábito que ela detestava, mas fazer o quê?), ajeitei o chapéu e respondi com meu sorriso torto e semicerrado que, como ela gostava de provocar, me deixava com o rosto engraçado.
Eu era quase um urso do seu lado. Não, não sou alto nem corpulento, era a sua delicadeza, seu tipo mignon e aparentemente frágil que deixava essa impressão. No entanto, sabia perfeitamente que as coisas nem sempre são o que aparentam ser. Ali estava uma mulher forte, inteligente, independente e decididamente indecisa. Abraçamo-nos com carinho e saudade.
Antes que ela falasse alguma coisa, elogiei sua forma e reclamei dos óculos, que retirei carinhosamente de seu rosto com a desculpa de ver os seus olhos. Ela riu, abriu a bolsa e pegou um cigarro. Imediatamente acendi o Zippo prateado, sentindo o toque de sua mão suave segurar as minhas para o vento não apagar a chama do isqueiro.
O tempo, por sinal, não ajudava. Já era início da noite, estava frio e o meu surrado trench coat não era suficiente para proteger do vento. Entramos em uma livraria para nos proteger do frio. Enquanto fingia folhear um livro, raciocinava rápido: sabia que não podia desperdiçar aquele encontro ocasional. Onde íamos terminar, se é que isso tinha alguma importância, nem passou pela minha cabeça.
Falamos algumas bobagens e a convidei para tomar um drinque em um night club ali perto. Ainda era cedo e encontraríamos um ambiente mais íntimo. Como um casal demos os braços e caminhamos pela avenida principal, agora iluminada e tomada por pessoas procurando suas conduções para casa.
Sem dúvida, estávamos felizes.
Cumprimentamos o velho barman, cúmplice de outras paixões e nos sentamos na mesma mesa de sempre. Pedi seu tão apreciado whisky sour e ela meio que cínica, mostrou-se surpresa pela minha lembrança. Mandei vir um scotch puro, sem gelo e falei uma bobagem qualquer em seu ouvido. Nossos rostos ficaram tão próximos que quase fiquei perturbado. Seu perfume, ainda o de sempre, era marcante na medida certa e muito envolvente.
Ela estava à vontade e bem-humorada. Esquecemos o tempo, a bebida relaxava e nós dois nos bastávamos. De repente riu e falou que alguma coisa estava diferente em mim, eu estava lembrando muito o Robert Mitchum, com sua cara amarrotada, o cigarro eternamente no canto da boca, pouquíssimas palavras, e um eterno ar de quem não está levando nada à sério. Claro que não respondi nada, era bom que ela pensasse assim.
O garçom se aproximou para trocar o pratinho das castanhas e, por um instante, silenciamos. Com a cabeça baixa, ela colocou suas mãos nas minhas. Olhos nos olhos, toquei em seu pequeno queixo e trouxe seu rosto bem para perto de mim. Rocei bem de leve meu nariz em sua face e naturalmente roçamos nossos lábios, sem pressa ou ansiedade. Durou apenas uma fração de segundos e imediatamente nos beijamos profunda e intensamente, como nos velhos tempos.
*****
Cai em mim quando nos esbarramos fortemente em plena avenida principal. Já nos conhecíamos de vista ou através de amigos, nem sei mais. De vez em quando arriscava um oi, nem sempre correspondido. Ela, coitada, teve que se apoiar em mim para não cair e, para meu desgosto perguntou se eu não prestava atenção nas pessoas, logo eu, que sempre que possível não tirava os olhos de cima dela. Sem saber onde me enfiar de tanta vergonha, simplesmente pedi desculpas e, sem olhar para trás, segui meu caminho, completamente derrotado.
Decididamente, eu não sou Robert Mitchum.
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Perdoem leitores, mas a crônica na verdade termina aqui: hoje pela manhã estava procurando umas fotos para ilustrar um artigo sobre um filme de guerra da década de 50, quando dei de cara com uma foto do Robert Mitchum e da Jane Greer, astros de “Fuga do Passado”, um filme noir de 1947.
Fiquei surpreso, afinal a foto estava totalmente fora do contexto e acabei pensando assim: “Puxa vida, se eu fosse o Robert Mitchum, eu ganhava essa mulher!”. Daí, parei, olhei bem e completei: “Só que eu não sou o Robert Mitchum!”. Pronto, nasceu uma crônica!
Pois é. O ator americano todo mundo sabe quem foi, mas a bela Jane Greer teve uma carreira mediana até o início da década de 60, quando passou para a televisão, atuando em seriados como “Bonanza”, “Alfred Hitchcok Present” e “Columbo”. Morreu em 2001, de câncer, com 76 anos de idade.
(carlosemersonjr@gmail.com)
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