O jovem diplomata que aos 33 anos assumiu o Ministério da Cultura e seis meses depois se tornou pivô da primeira grande crise do governo de Michel Temer, ao se recusar a emitir um laudo pelo Iphan que ia contra as diretrizes técnicas do órgão, concedeu entrevista exclusiva para A VOZ DA SERRA, em sua vinda à cidade para eventos dos 200 anos.
AVS: O senhor se tornou conhecido nacionalmente pela forma como deixou o Ministério da Cultura em 2016. Mas, começando pelo início, como é que um jovem diplomata de 33 anos se tornou ministro de Estado?
Marcelo Calero: Desde pequeno eu queria ser diplomata, um sonho difícil. Nenhum concurso é fácil, mas este em particular é muito difícil, e eu me preparei a vida inteira para esse concurso. Cursei Direito na Uerj e trabalhei em grandes empresas, incluindo a Petrobrás, através de concurso, até que em 2007 consegui ser aprovado. Daí eu comecei minha carreira diplomática, servi no México, e em 2013, fui convidado para integrar a equipe do então prefeito Eduardo Paes. Fiz uma carreira ligada à prefeitura e à cultura, e presidi o comitê das comemorações dos 450 anos do Rio. De lá eu fui para a Secretaria Municipal de Cultura, onde desenvolvemos uma série de programas não apenas relacionados à classe artística propriamente dita, mas tendo como grande meta ampliar o acesso. Quando a gente fala de cultura, eu penso que esta deve ser a tônica: buscar caminhos para que a população tenha mais acesso. A gente sabe que esse setor tem parcos recursos, ainda que no Rio tivéssemos um orçamento que eu considerava adequado, cerca de R$ 200 milhões por ano. Investimos em programas como o passaporte dos museus, o Bibliotecas do Amanhã, no qual reformávamos e dávamos novos projetos pedagógicos às bibliotecas municipais... Desenvolvemos o Museu do Amanhã, que foi inaugurado na minha gestão e foi a maior satisfação que eu tive na vida, porque a maior parte dos visitantes jamais havia estado num museu. Trabalhamos também num programa amplo de fomento às artes e de reforma dos equipamentos culturais, especialmente teatros, lonas e areninhas. Eu acredito que esse trabalho foi reconhecido também por sua capilaridade, porque conseguimos identificar vários projetos culturais no Rio que significavam a diversidade da manifestação cultural da cidade, e conseguimos também dar algum tipo de apoio a esses projetos. No final, apoiamos mais de 100 desses pequenos projetos com pequenas cotas de patrocínio, que faziam toda a diferença. Tivemos um momento de pujança cultural. Esse trabalho também foi reconhecido, e por essa razão surgiu o convite para assumir o Ministério da Cultura. Na época, o que se queria era um quadro técnico para o ministério, inclusive porque ele passou à condição de Secretaria Nacional de Cultura. Quem me escolheu foi o ministro Mendonça Filho. Ele queria um técnico e fui escolhido por essa razão. Logo depois se tornou ministério. Eu tinha a idéia de que a minha missão ali, independentemente do viés ideológico-político do governo, era uma missão que constituía, no fim das contas, um grande privilégio, que era gerir a cultura brasileira, o nosso maior patrimônio. A idéia era ampliar para todo o Brasil, os programas que tiveram sucesso na secretaria municipal de Cultura.
O que foi possível fazer em seis meses?
Deu para fazer duas coisas. A primeira, foi ter conseguido reestruturar o ministério. Significa, por exemplo, que a gente criou a secretaria de economia da Cultura, pois a cultura tem que ser vista como um eixo estratégico de desenvolvimento do país. A gente tem que lembrar que a cultura gera emprego e renda. A pessoa que vai ao teatro, pega um táxi, compra pipoca, vai ao restaurante após o espetáculo, eventualmente até se hospeda num hotel... Enfim, a gente tem que pensar a cultura como essa grande cadeia produtiva, e na reestruturação do ministério, me preocupei com isso. Nos preocupamos também em valorizar os servidores de carreira, isso tem muito a ver com a visão que eu tenho de Estado. Um estado eficiente que não sirva a nenhum projeto político, mas ao interesse público. Não sei se isso é idealista demais, mas é no que eu acredito. A partir desse programa, dos 60 cargos de confiança do ministério, 44 foram preenchidos por servidores de carreira, muitos dos quais jamais haviam exercido uma posição de chefia por que nem sequer tinham sido entrevistados, embora tivessem talentos múltiplos.
Esse quadro foi mantido após sua gestão?
Em certa medida foi, mas não integralmente. E depois eu comecei a formatar um projeto que me era muito caro, a Agência Nacional de Artes, seria a Ancine das artes. A gente via que o setor audiovisual já tinha uma estruturação própria, por meio da Ancine, inclusive com um fundo bastante importante em termos de recursos financeiros, e as artes, por sua vez, ficavam absolutamente reféns da Lei Rouanet, que é um mecanismo importante, mas é insuficiente. Até mesmo porque a escolha dos beneficiados fica a cargo das empresas, e portanto existem condicionantes de ordem mercadológica – o que eu entendo, não estou condenando. Mas, simplesmente como política pública de cultura, tem muitas limitações. A idéia era que a Agência Nacional de Artes pudesse preencher essa lacuna, inclusive financiando projetos que não necessariamente precisassem de financiamento a fundo perdido. Ou seja, que podiam – assim como acontece na Ancine – dar algum tipo de retorno financeiro à própria agência, para que ela pudesse então reinvestir.
O senhor também iniciou um trabalho ligado à Lei Rouanet…
A gente estava começando a formatar uma nova instrução normativa, que acabou saindo do forno com o atual ministro, Sérgio Sá Leitão. O ministro Roberto Freire chegou também a publicar alguma instrução, que depois sofreu modificações. Nosso trabalho maior foi no sentido de dar maior transparência à Lei Rouanet. Inclusive já tínhamos fechado uma parceria com o Banco do Brasil para a utilização de um cartão. Ou seja, todas as transações de Lei Rouanet deveriam ser feitas por esse cartão, e assim a gente saberia os gastos relacionados à verba pública em tempo real. Chegamos a assinar um convênio com o Ministério da Justiça e o Ministério da Transparência para que fosse dada maior publicidade das informações, porque sabemos que em relação à Lei Rouanet, existem muitos mitos. Mas, no fim das contas, trata-se de um percentual muito baixo de subsídio, dentro do universo de subsídios que são dados pelo governo federal. Algo em torno de 0,7%. Além disso, sabemos que nenhum grande projeto cultural brasileiro, como museus ou companhias permanentes de teatro e dança, sobrevive sem a Lei Rouanet. Ela permite, por exemplo, que o ingresso no Museu do Amanhã possa chegar ao público ao preço de R$10 ou R$15, em vez dos R$100 que deveria custar, por conta dos seus custos de manutenção. Então, ela é um instrumento importante. O único problema é que ela acaba sendo o único guichê ao qual a cultura brasileira pode recorrer, e isso é totalmente incompatível com a grandiosidade e a diversidade da nossa cultura.
As circunstâncias de sua saída do ministério são conhecidas. Em especial a denúncia envolvendo o ex-ministro Geddel Vieira Lima, que hoje está preso. Desde então, o senhor sofreu alguma represália por parte do governo federal?
Eu fui confrontado com o que há de pior na política brasileira. O que aconteceu foi que o Geddel, depois de me pressionar no sentido de aprovar o edifício onde ele na época me dizia que tinha um apartamento, eu disse não e afirmei que o Iphan tomaria a decisão técnica que deveria ser tomada. Então ele recorreu ao Temer, que não apenas disse que eu tinha que atender ao Geddel, porque o não atendimento criava "dificuldades operacionais" no gabinete presidencial, seja lá o que isso signifique, como também, depois, na hora da despedida, o Temer me deu dois tapinhas nas costas e disse: "a política tem dessas coisas". Ou seja, é a visão da política tradicional, que não serve ao interesse público, mas a um projeto político, um projeto de poder, e serve para cortejar e atender a interesses mesquinhos e privados de pessoas que estão ligadas ao governo, e a um figurão que se acha acima das leis e acima das regras, como era o caso do Geddel. Bom, depois houve a descoberta dos R$ 51 milhões do Geddel...
Esse episódio o surpreendeu?
Me surpreendeu pela quantidade de dinheiro. Depois eu consegui criar perfis muito nítidos, tanto do Geddel quanto do Temer. Acho que o Temer não tem estatura moral para ser presidente, e o Geddel revelou, com aquele episódio, a visão que ele tem sobre o Estado, uma visão altamente utilitária e corrupta. Agora, a quantidade de dinheiro, maior apreensão na história do Brasil, R$ 51 milhões, me causou muita surpresa. Mas eu falava que em novembro do ano passado a Procuradoria Geral da República descobriu que aquele edifício que ele queria que eu aprovasse na verdade estava sendo usado para um esquema de lavagem de dinheiro. Agora, o que mais me impressiona nessa história toda é que o meu comportamento é visto como excepcional. Infelizmente, o comportamento que deveria ser majoritário, não é comum, padrão, foi visto e não foi apoiado nem sequer pelo presidente da República. Ou seja, você se negar a entrar na corrupção, você sair do mecanismo, é visto como algo excepcional. É lamentável, mas eu acredito realmente que a gente esteja prestes a fazer uma grande mudança, para que este tipo de comportamento não seja mais excepcional. Nos círculos políticos ele é visto inclusive como um comportamento excêntrico. Você deve imaginar que eu também não sou uma pessoa muito bem vista nos círculos políticos de Brasília, porque lá se confunde lealdade com cumplicidade. Eles querem cúmplices, pessoas que sejam cúmplices dos seus crimes, e eu me neguei a ser cúmplice. E tenho muito orgulho disso, porque isso não revela apenas uma atitude pontual – eu falo isso de todo coração – mas a própria formação que graças a Deus eu tive na minha casa.
Hoje eu posso olhar de peito aberto para os meus amigos e familiares, e durmo com a consciência tranquila enquanto o Geddel está lá na Papuda há mais de cinco meses. Aécio Neves foi um que vocalizou muito essa indignação da classe política contra mim, disse que quem tinha que ser investigado era eu e não Geddel. Hoje a gente sabe muito bem por que ele fez essa defesa, uma vez que ele próprio representa essa oligarquia política tão desconectada da realidade brasileira e tão corrupta.
As gravações da JBS deixaram muito claro o seu papel nesse esquema de corrupção. E uma das coisas que mais me marcaram foi que mais de 20 partidos da base do governo e seus respectivos líderes se prestaram ao papel patético de assinarem uma carta em defesa do Geddel, e o teor dessa carta é nojento. É surreal, e revela, de novo, essa desconexão entre a política brasileira e a realidade das pessoas. Essa carta tem que ser resgatada.
O fato de o Iphan ser submetido ao MinC levanta uma questão importante, porque muitas pessoas ainda tratam cultura e arte como sinônimos, no que parece ser um caso de tomar a parte pelo todo. Qual a sua visão disso?
A cultura, na verdade, se relaciona a identidade, se relaciona ao próprio perfil antropológico de certa população num determinado espaço de tempo, de acordo com determinadas circunstâncias. A arte é uma forma de manifestar essa cultura por meio de expressões artísticas, de linguagens diversas. Mas quando falamos em cultura, falamos em patrimônio e identidade, estamos falando de um arcabouço. Do arcabouço que determinada experiência civilizatória foi capaz de forjar. Por isso a gente fala de legado, de patrimônio, e de identidade. A preocupação do ministério tem que ser muito maior do que simplesmente artes. Mas o problema é que no Brasil carecemos de uma política nacional de artes consistente. Na verdade, carecemos de tudo, na cultura brasileira. E o que me impressiona é que a gente ainda não se conscientizou do que ela pode gerar em termos de riqueza, em termos de futuro e de reconhecimento internacional, embora isso seja muito claro. Quando vamos ao exterior a primeira coisa que falam do Brasil é sobre a Bossa Nova, o samba e a caipirinha, todas manifestações culturais. E hoje, quando a gente fala de economia criativa, por exemplo, a cultura é que dá o lastro para que essa economia se desenvolva. Em vez de falar sobre a indústria da alimentação a gente fala sobre gastronomia, porque na gastronomia já está embutida uma experiência cultural; em vez de falar de vestuário, a gente fala de moda, e por aí vai. Em todos estes setores que estão surgindo a gente consegue agregar elementos ligados à nossa experiência civilizatória, customizar uma indústria que antes era padrão, de acordo com esses elementos. Daí criamos, portanto, a chamada economia criativa. São ferramentas digitais que permitem que a gente venda esse produto de uma maneira muito mais fluida, e portanto mais lucrativa.
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